Educação Popular Em Saúde Artigo?
ARTIGOS A educação popular na atenção básica à saúde no município: em busca da integralidade Popular education in primary care: in search of comprehensive health care La educación popular en la atención básica a la salud en el municipio: en busca de la integralidad Paulette Cavalcanti de Albuquerque I, 1 1 Rua João Ramos, 285, apto.1601 Graças – Recife, PE 52.011-080 ; Eduardo Navarro Stotz II I Médica sanitarista da Prefeitura do Recife, Gerente do Distrito Sanitário III, PE. [email protected] > II Pesquisador, Departamento de Endemias, Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, RJ. [email protected] > RESUMO Trata-se de um artigo de revisão bibliográfica e análise documental sobre as experiências de educação em saúde nos serviços, baseadas na educação popular em saúde e do seu potencial em desenvolver a integralidade das ações no âmbito da atenção básica. É discutida a forma como a educação em saúde vem sendo trabalhada pelos serviços e as dificuldades para que possa contribuir para a construção de uma atenção realmente integral à saúde. As ações de saúde são entendidas como ações educativas em que, tanto profissionais como usuários aprendem e ensinam, numa construção dialógica do conhecimento. Desta forma, a atenção ao individuo também faz parte das reflexões discutidas no texto, tanto no que se refere à postura dos profissionais quanto ao respeito ao saber popular e à busca da terapêutica mais eficaz pelos usuários. A partir da revisão, é proposta uma sistematização de programas de ação e atividades que podem compor uma proposta de educação popular em saúde para os municípios. Palavras-chave: Educação popular; atenção básica à saúde; integralidade; educação em saúde. ABSTRACT This paper presents a review of the literature on health education experiences in services as well as a documental analysis of this theme. Discussion is based on popular health education and its potential contribution to comprehensive primary health care. The way in which health education is promoted in health services and the difficulties encountered in fulfilling its role of contributing towards the construction of comprehensive primary health care is of central concern. Health actions are understood as educational actions. Thus, the health team and the patients learn and teach, in a dialogical construction of knowledge. Individual care is also discussed in this paper, insofar as the health professional’s posture in relation to popular knowledge concerning health care and his respect for the patient’s attempt to find the best therapeutic is at issue. As a result of the review of the literature, a systematic compilation of health educational programs and activities, which may be integrated into a program of popular health education for the municipalities, is proposed. Key words: Health education; primary health care; health system; health services; health education. RESUMEN En este estudio se hace una revisión bibliográfica y un análisis documental de las experiencias de educación en salud en los servicios, basadas en la Educación Popular en Salud y su capacidad de desarrollar la integralidad de las acciones en la Atención Primaria. Es discutida la forma como la educación en salud viene siendo trabajada en los servicios de salud, y las dificultades para la construcción de una atención realmente integral de la salud. Las acciones de salud son acciones educativas donde, tanto profesionales como usuarios aprenden y enseñan, construyendo el saber. Así, la atención a los individuos también es discutida en el ensayo, tanto en lo que se refiere a la postura de los profesionales como al respeto al saber popular y a la búsqueda, de los usuarios, de la terapéutica más adequada. Es propuesta una sistematización de programas de acción y actividades que pueden componer una propuesta de Educación Popular en salud para los municipios. Palabras clave: Educación popular; atención primaria de la salud; integralidad; educación en salud. Apresentação: objetivos e metodologia A busca de condições adequadas de vida e saúde tem sido um anseio e uma luta de povos por todo o mundo. Alternativas têm sido pensadas, reformas organizadas e implantadas, paradigmas e princípios revistos sem que o marco referencial da prática médica clínica de base flexneriana ou da própria saúde coletiva tenham conseguido dar conta do atendimento às necessidades de saúde de grande parte da população. A universalidade, a eqüidade e a integralidade das ações têm disputado espaço com as propostas racionalizadoras e de contenção de custos. Dos três princípios para a organização do modelo, a integralidade tem sido de difícil execução e garantia efetiva para a população, tendo em vista que demanda mudanças na concepção de trabalho dos profissionais, na chamada “caixa-preta” do consultório, onde as ações curativas permanecem completamente dissociadas da promoção da saúde e da prevenção. Considera-se que a chave para a real garantia deste princípio está relacionada à ampliação do conceito de saúde. A Carta de Ottawa, neste sentido, é o melhor referencial. Ao conceituar a saúde como um recurso para o progresso pessoal, econômico e social e como um conceito positivo que transcende o setor sanitário e que tem como requisitos para sua garantia a paz, a educação, a moradia, a alimentação, a renda, um ecossistema estável, justiça social e eqüidade (OMS, 1986), a Carta de Ottawa desloca para o âmbito da política a garantia da saúde, destacando como fundamental a participação comunitária. A promoção da saúde passa a ser vista como uma tarefa dos governos, das instituições e grupos comunitários, dos serviços e profissionais de saúde. A reorganização dos serviços é colocada como uma das estratégias para viabilizar ações de promoção da saúde, assim como as mudanças na formação e nas atitudes dos profissionais são requisitos para que as necessidades do indivíduo sejam vistas de uma forma integral. Em todas essas estratégias, a educação em saúde torna-se uma ação fundamental para garantir a promoção, a qualidade de vida e a saúde. Tradicionalmente, a educação em saúde tem sido um instrumento de dominação, de afirmação de um saber dominante, de responsabilização dos indivíduos pela redução dos riscos à saúde. A educação em saúde hegemônica não tem construído sua integralidade e pouco tem atuado na promoção da saúde de forma mais ampla. As críticas a essa política dominante têm levado muitos profissionais a trabalharem com formas alternativas de educação em saúde, das quais se destacam aquelas referenciadas na educação popular. A educação popular pode ser um instrumento auxiliar na incorporação de novas práticas por profissionais e serviços de saúde. Sua concepção teórica, valorizando o saber do outro, entendendo que o conhecimento é um processo de construção coletiva, tem sido utilizada pelos serviços, visando a um novo entendimento das ações de saúde como ações educativas. Sendo a atenção básica o locus onde prioritariamente devem ser desenvolvidas ações de educação em saúde, e sendo o Programa de Saúde da Família (PSF) hoje a principal estratégia para a “reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica” (Brasil, 1997, p.10), pode-se considerar este como um ambiente favorável ao desenvolvimento da educação popular em saúde. Os órgãos gestores nacionais enfatizam a importância das atividades educativas no âmbito do PSF, embora não tenham sido desenvolvidas propostas para seu financiamento nem políticas específicas para o desenvolvimento de ações ou mesmo que visassem à capacitação dos profissionais. No âmbito dos municípios, tem sido mais comum o relato de experiências utilizando o referencial da educação popular nas práticas de saúde, porém levadas a cabo por iniciativa dos próprios profissionais, muitas vezes até em contraposição aos gerentes municipais. A definição de uma política municipal de educação em saúde, especialmente se pautada pelos princípios da educação popular, teria o papel importante de induzir novas práticas nos serviços de saúde, propiciando uma valorização do saber popular e do usuário, fazendo ver aos profissionais o caráter educativo das ações de saúde, facilitando a participação de importantes atores sociais da comunidade no processo de construção da saúde. Neste trabalho, toma-se como pressuposto que a educação popular em saúde, como processo contínuo e participativo, visa ao entendimento do processo saúde-doença-saúde, sendo a promoção da saúde essencial para garantir a integralidade das ações. Desta forma, busca-se analisar e discutir como uma gestão municipal interessada em investir na promoção e na integralidade da saúde pode contribuir para a institucionalização das ações de educação em saúde, mediante uma política municipal referenciada na educação popular, no âmbito da atenção básica à saúde especialmente no que se refere ao modelo baseado no PSF. O trabalho foi elaborado a partir de tese de doutoramento em saúde pública defendida em outubro de 2003, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) (Albuquerque, 2003). Baseou-se em revisão bibliográfica e análise documental realizada entre março e junho de 2001 e atualizada entre março e maio de 2003. Foram pesquisadas as bases de dados Lilacs e Medline, nos períodos de 1991 e 2001, usando como unitermos educação popular, integralidade, saúde comunitária e medicina comunitária, tendo sido selecionados artigos que pudessem apresentar uma visão panorâmica das experiências de educação em saúde no Brasil, referenciadas na educação popular. Como análise documental, foram pesquisados os acervos da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco e da Secretaria Municipal de Saúde do Recife, além de textos e artigos da Rede de Educação Popular e Saúde (RedeEdpop), incluindo o Boletim “Nós na Rede”, editado pela mesma. Documentos e publicações do Ministério da Saúde também foram consultados, de forma a complementar a análise. A integralidade no SUS A integralidade do atendimento em saúde aparece no texto constitucional, no artigo 198, como uma das diretrizes do sistema único, expessa no atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (Brasil, 1988). Carvalho & Santos (1995, p.72), comentando este artigo, lembram que “a prioridade constitucionalmente dada às atividades preventivas (.) indica o novo enfoque pelo qual as ações e serviços de saúde devem ser vistos e tratados”, de acordo com a ampliação do conceito de saúde expressa nos textos legais, que é a base do conceito de integralidade. A Lei Orgânica da Saúde estabelece como um dos princípios do SUS a integralidade da assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema (Brasil, 1990, inciso II do artigo 7º). A vinculação do termo integralidade à assistência aparece em outros artigos da Lei Orgânica (art.5º., inciso III e art.6º., inciso I, alínea d), embora exista referência à “integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico”, É clara também a necessidade de formulação de políticas para promoção da saúde envolvendo os setores econômicos e sociais, como conseqüência do entendimento da amplitude de fatores determinantes e condicionantes da saúde, o que também vai refletir uma posterior ampliação da abrangência do conceito de integralidade para além do indivíduo e da assistência. Carvalho & Santos (I995, p.71) lembram que a integração da assistência e da prevenção indica a orientação imanente no SUS de não separar as duas modalidades de proteção da saúde, principalmente depois de se presenciar os resultados negativos da priorização da assistência médico-hospitalar em detrimento das medidas de prevenção da doença e dos riscos de agravo à saúde individual e coletiva. Embora uma visão holística do homem e conseqüentemente da medicina e da saúde sejam bastante antigas, o conceito de integralidade é relativamente novo na saúde. Emana do Movimento de Reforma Sanitária e se concretiza com a Constituição Federal de 1988, embora já apareça nos textos dos antigos Programas do Ministério da Saúde, como por exemplo, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – PAISM (Brasil, 1986a). As ações Integradas de Saúde (AIS) podem ser consideradas como um dos primeiros movimentos concretos em busca da junção assistência promoção e prevenção. Enfocando prioritariamente a integração dos serviços municipais e estaduais (locus das ações preventivas) à rede de assistência médica do Inamps, as AIS também investiram no financiamento de novas unidades básicas e na criação de instâncias de participação popular, as comissões interinstitucionais de saúde, em nível local, regional, municipal. Oliva, já em 1987, alertava que a discussão sobre as AIS tem ficado restrita ao Sistema de Financiamento da prestação de assistência médica, mantendo marginal a saúde pública vista como proteção coletiva e promoção da saúde. “Se esta tendência se perpetuar, chegaremos ao momento em que ao que hoje se chama AIS passaremos a chamar Ações Integradas de Assistência Médica”, afirma o autor sobre a realidade daquele período (Oliva, 1987, p.18). Carvalho (1993a) trabalha o conceito de integralidade em três níveis: no marco teórico, na prática de saúde em nível local e em nível distrital. No marco teórico, relaciona a integralidade com a concepção de homem, de mundo e de sociedade; com a concepção de medicina 2 2 O termo Medicina é aqui empregado no seu sentido amplo, não se referindo apenas à Medicina científica ocidental moderna e cosmopolita (nota do autor) (Carvalho, 1993, p.134) e de processo saúde-doença; bem como com a concepção de assistência e de atenção à saúde. No que se refere à prática em nível local, o autor relaciona a integralidade à natureza e à relação das atividades e ações de atenção integral à pessoa e à coletividade na promoção, prevenção, saúde coletiva, terapêutica e reabilitação. As atividades integradas de ensino e pesquisa, o grau de interação entre as diversas categorias profissionais e a vinculação profissional de saúde usuário são outros aspectos necessários, donde se considera a interdisciplinaridade como “condição sine qua non para a viabilização do conceito de integralidade ” (Carvalho, 1993a, p.23, p.136). No entanto, entendemos que outros elementos se incorporam à discussão do conceito de integralidade, especialmente com vistas à promoção da saúde, como os de intersetorialidade e participação social. Além de pensar o indivíduo como um todo, é preciso pensá-lo inserido na comunidade, no próprio município/cidade e no país. E, pensando assim, observar que as ações de saúde não podem ser voltadas apenas para a assistência ou mesmo para o setor saúde, sendo necessário articular políticas sociais e econômicas para a promoção da saúde. No que se refere à participação social, uma ação integral de saúde também deve incorporar a idéia de cidadania, de forma que nenhum cidadão possa ser considerado saudável sem que tenha seus direitos garantidos. Diante dessa discussão, poderíamos conceituar integralidade como um princípio pelo qual as ações relativas à saúde devem ser efetivadas, no nível do indivíduo e da coletividade, buscando atuar nos fatores determinantes e condicionantes da saúde, garantindo que as atividades de promoção, prevenção e recuperação da saúde sejam integradas, numa visão interdisciplinar que incorpore na prática o conceito ampliado de saúde. A estratégia de saúde da família, ao atuar numa população adscrita, tendo responsabilidade sanitária sobre o espaço de atuação, sobre os indivíduos e a coletividade, tendo como atribuição fomentar a participação popular, o controle social e o reconhecimento da saúde como direito de cidadania, tem plenas condições de efetivar a integralidade. Porém, do discurso para a prática, da norma para a real efetivação das ações há um longo caminho, tendo como resultado a reprodução de práticas assistencialistas, compartimentalizadas e medicalizantes pelas equipes de saúde da família. Educação em saúde no SUS No relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde, a única referência à educação para a saúde está vinculada à incorporação dos agentes populares de saúde como pessoal remunerado, sob a coordenação do nível local do Sistema Único de Saúde, para trabalhar em educação para a saúde e cuidados primários (Brasil, 1986b). A Lei Orgânica da Saúde também não se refere explicitamente ao termo, destacando, porém, as ações de promoção, proteção e atividades preventivas, nas quais poderíamos considerar que, implicitamente, está contida a educação em saúde (Brasil, 1990). Embora os dois textos sejam enfáticos em conceituar a saúde de forma ampla, a falta de referência explícita à educação em saúde reflete a dificuldade desta em ser considerada como um instrumento para a garantia de melhores condições de saúde. Reflete, ainda, o caráter marginal, não hegemônico, das ações educativas e o fato de a educação e saúde ainda não constituir um campo de atuação do SUS. Por outro lado, a educação em saúde e demais ações de promoção da saúde são descritas como parte integrante de todos os programas ministeriais, sendo também relatadas junto às condutas médicas para cada doença nos livros-texto de referência (OPS, 1983; Harrison et al., 1984; Brasil, 1986a). No dia-a-dia dos serviços de saúde, porém, pouca ou nenhuma importância é dada às ações educativas. Trabalhos em grupo são muitas vezes marginalizados, os profissionais envolvidos são desacreditados e desestimulados, a infraestrutura necessária é escassa e de difícil acesso aos profissionais. Na análise do tema educação em saúde nos serviços, um outro aspecto da prática em saúde é ainda mais secundarizado: o de que toda ação de saúde é uma ação educativa. O processo de promoção-prevenção-cura-reabilitação é também um processo pedagógico, no sentido de que tanto o profissional de saúde quanto o cliente-usuário aprendem e ensinam. Esses conceitos podem mudar efetivamente a forma e os resultados do trabalho em saúde, transformando pacientes em cidadãos, co-partícipes do processo de construção da saúde. Quer seja num aspecto ou noutro, são grandes as dificuldades das equipes de saúde para efetivar uma prática cotidiana de promoção, incorporando ações educativas no dia a dia dos serviços. Quando isso acontece, dá-se, muitas vezes, de acordo com o interesse individual dos profissionais, realizando trabalhos em grupos com gestantes, idosos ou portadores de patologias, como no caso dos grupos de diabéticos ou hipertensos. As atividades de educação em saúde são conduzidas, muitas vezes, de acordo como o programa da ocasião ou a epidemia em pauta (hoje é dengue, amanhã é diabetes, depois a vacinação dos idosos e assim por diante), sem preocupação com a integralidade no próprio processo educativo ou com uma continuidade de ações junto à comunidade que trabalhe sua autonomia e conscientização. O mais difícil é que essas demandas por “campanhas” educativas tomam conta dos serviços de saúde, devido ao grande volume de atividades necessárias a sua viabilização, provocando a paralisação dos profissionais que se vêem sem tempo para o desenvolvimento de um trabalho mais estruturador. Nesse processo, a relação com a comunidade tende a se tornar utilitarista quando conduzida no sentido de garantir mobilização dos indivíduos para as campanhas. A isso, acrescenta-se a escassez de atividades de capacitação em educação em saúde. Até o final da década de 90, o chamado Programa de Educação, Informação e Comunicação em Saúde (IEC) representava a política oficial do Ministério da Saúde nesta área. Estava presente em todos os financiamentos, inclusive (ou principalmente) os do Banco Mundial, enfatizando atividades de massa, como uma forma de garantir “maior impacto” das ações, delegando a educação popular em saúde ao rol das ações “alternativas”. O chamado Projeto Nordeste foi um instrumento de implantação dessa política nos estados da região, investindo em capacitação e produção de materiais educativos. Em Pernambuco, foi com os recursos do Projeto Nordeste que se iniciou a estruturação das ações de educação popular em saúde e a criação dos núcleos de educação popular em saúde. Foi um começo, mas, mesmo assim, ainda foi muito pequeno o número de profissionais capacitados quando comparado com o conjunto de trabalhadores do sistema. Hoje, o Ministério da Saúde reorganizou as ações de educação, criando o Departamento de Gestão da Educação em Saúde (DEGETES), no qual foi estruturada uma coordenação de educação popular que vem incentivando os movimentos e práticas de educação popular em saúde de todo o país. Foi criada a ANEPS, Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde; foram realizados encontros nacionais, lançados livros específicos sobre o tema e criado um grupo de trabalho junto à Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Apesar dos sinais claros de consolidação de um campo da educação popular e saúde, ainda não são muitos os relatos de experiências de educação popular em saúde nos serviços. Estes, freqüentemente, referem-se à “falta de apoio” das coordenações ou das secretarias municipais e estaduais, refletindo o sentimento dos profissionais de estarem solitários no desenvolvimento desse trabalho. Em alguns casos, a “falta de apoio” é concreta, expressa em políticas ou em atitudes políticas como quando é cobrada uma produtividade em consultas que dificulta a disponibilidade de tempo para atividades educativas, ou quando não são viabilizadas as condições mínimas para essas atividades como espaço físico, equipamentos (desde cadeiras a aparelhos de televisão e vídeo), bem como acesso a materiais educativos, audio-visual ou de apoio. Também é comum entre os profissionais de saúde a cultura de que não é preciso “aprender” a fazer educação em saúde, como se o saber clínico e a formação acadêmica fossem suficientes para a implementação dessa prática. Com esse raciocínio, é freqüente encontrarmos atividades educativas que fazem uma transposição para o grupo da prática clínica individual e prescritiva, tratando a população usuária de forma passiva, transmitindo conhecimentos técnicos sobre as doenças e como cuidar da saúde, sem levar em conta o saber popular e as condições de vida dessas populações. Muitas vezes, a culpabilização do próprio paciente por sua doença predomina na fala do profissional de saúde, mesmo que este conscientemente até saiba dos determinantes sociais da doença e da saúde (Vasconcelos, 1999; Valla, 1999). Presenciando a postura dos profissionais de saúde durante uma das reuniões do grupo de desnutridos, Vasconcelos (1999, p.81) descreve seu espanto diante “do autoritarismo daquelas relações educativas, onde as dúvidas das mães eram respondidas de forma normativa e simplificadora”, Diante dessas constatações e dos questionamentos sobre a prática da educação em saúde no SUS, referendamos a posição do Seminário sobre Promoção da Saúde e Educação Popular, realizado na Universidade de Brasília (UnB), em agosto de 2000, quando se refere à educação em saúde necessária para a sociedade brasileira como aquela que aponta para o agir educativo em saúde como um processo que se funde ao projeto político-pedagógico, inerente às práticas de saúde enquanto práticas sociais (SPSEP, 2000). Cabe, então, aprofundar um pouco a análise sobre a ação educativa em saúde e, em seguida, sobre a educação popular. Educação popular em saúde A educação em saúde e, na forma como apresentado acima, a própria ação de saúde como ação educativa, estão referidas a uma conceituação teórica tanto da relação educação – sociedade como do próprio processo ensino-aprendizagem, bem como nas concepções de saúde e do processo de saúde – adoecimento humano. Esse conjunto teórico e, porque não dizer, ideológico, como bem cita L’Abbate (1994), influencia os resultados das ações desenvolvidas. Nas duas últimas décadas, tem sido grande o apelo à participação e, derivada desta, ao popular. A educação popular tem, no entanto, uma raiz mais profunda. A Pedagogia do Oprimido teve sua primeira edição publicada em 1970 (embora seu prefácio date de dezembro de 1967), fruto de observações de Paulo Freira no exílio e de suas experiências nas atividades educativas no Brasil, no início dos anos 1960. Nesse momento, o autor falava principalmente da necessidade de posicionar a educação como instrumento de conscientização, libertação, transformação. Na saúde, segundo Vasconcelos (2001), a origem da utilização da educação popular remonta ao início da década de 1970, quando as experiências alternativas de saúde começam a se reestruturar, em paralelo às Comunidades Eclesiais de Base, com o ressurgimento dos movimentos sociais de luta contra a ditadura, O autor relata que a participação de profissionais de saúde nas experiências de educação popular, a partir dos anos 70, trouxe para o setor saúde uma cultura de relação com as classes populares que representou uma ruptura com a tradição autoritária e normatizadora da educação em saúde. (Vasconcelos, 2001, p.14) A metodologia da educação popular, da forma como pensada por Paulo Freire, era o referencial dessas experiências, o que o autor considera como um elemento estruturante fundamental, Vasconcelos define educação popular como um modo de participação para a organização de um trabalho político que abra caminho para a conquista da liberdade e de direitos. Ela objetiva: trabalhar pedagogicamente o homem e os grupos envolvidos no processo de participação popular, fomentando formas coletivas de aprendizado e investigação de modo a promover o crescimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento. (Vasconcelos, 2001, p.4) Várias experiências de educação popular em saúde têm sido descritas (Vasconcelos, 1999; Amorim, 2001; Chiesa & Westphal, 1995; Freire Jr, 1993; Mello et al., 1998; Dias, 1998; Pernambuco, 1998a; 1998b, Gouveia & Pires, 2001; dentre outros), com resultados importantes para a construção de uma nova forma de pensar a saúde, principalmente no sentido da consolidação de um trabalho efetivamente capaz de incluir comunidades e usuários no processo de cuidar e promover a saúde. Para ilustrar, descreveremos sucintamente algumas dessas experiências que foram importantes para a construção da proposta municipal que é apresentada ao final deste trabalho, destacando que não são as únicas e sim exemplos de um grande número de trabalhos que vêm sendo publicados nesta área. Amorim (2001) relata a experiência do Centro Comunitário do Centro Psiquiátrico Pedro II, que passou a congregar uma série de projetos com base na educação popular. A brinquedoteca, o clube da terceira idade, as oficinas de artes e o projeto Vidas (Valorização do Indivíduo no Desenvolvimento de Ações de Saúde), que v isavam à construção de alternativas de autonomia pessoal e social para a clientela relegada a estratégias de medicalização, são alguns dos projetos citados que respeitavam o saber do outro, dando voz a pessoas que nunca tinham tido voz ou vez no serviço de saúde. Posteriormente, o centro se abriu para o trabalho de diversos grupos comunitários, associações, ONGs que se articulavam numa rede que o autor passa a chamar de Universidade Aberta ao Saber Popular. O mesmo autor descreve, de forma lúdica, a experiência da rádio Revolução FM do Centro Comunitário, na qual os usuários da saúde mental discutem suas dificuldades na relação com aqueles que insistem em transformá-los em objetos (Amorim & Medeiros, 2000). Uma outra experiência com rádio comunitária é descrita por uma equipe de saúde da família de Sobral (CE) que, pela aproximação com as organizações populares presentes no Conselho Local de Saúde, passou a participar de atividades regulares na rádio comunitária, discutindo temas relativos à saúde. A equipe avalia essa experiência como “um poderoso instrumento de comunicação e um espaço de interação entre a lógica de pensar das camadas populares e a lógica do conhecimento técnico-científico representado principalmente pelos profissionais de saúde” (Nascimento et al., 1999, p.36). Silvan (1998) descreve o uso do teatro de mamulengo na educação em saúde, como uma das distintas linguagens que podem compor o processo educativo em saúde. Sendo o mamulengo (espécie de boneco movimentado com as mãos) caracterizado pela improvisação, permite a participação da população, propiciando a interação com a realidade vivida, os valores culturais e valorizando o coletivo. A prática de espetáculos de teatro de mamulengo na Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco era sustentada pelo processo de formação nas oficinas e cursos, nos quais os animadores eram capacitados, orientava-se a confecção de bonecos e a montagem de espetáculos, fazendo parte de um projeto estadual de educação em saúde que incluía a criação de núcleos de educação em saúde, oficinas de alimentação alternativa e uso de remédios caseiros, além de outras ações. Oliveira (1998) também descreve o uso do teatro de rua e de bonecos na educação em saúde. O eixo do projeto era a capacitação por meio de “oficinas de educação em saúde no controle da dengue”, que discutia os referenciais da educação popular em saúde, a linguagem crítica do teatro e da arte-educação, e planejava atividades a serem desenvolvidas, incluindo mostras de arte, eventos denominados “Arte e saúde na praça”, e mobilização com grupos populares de teatro e música. As oficinas realizadas nos serviços de saúde vinculadas aos programas de saúde da mulher, desnutrição, gestantes, idosos, hipertensos etc. representam uma prática de educação em saúde bem mais comum no dia-a-dia dos serviços. Chiesa & Westphal (1995) descrevem a experiência com oficinas educativas problematizadoras voltadas para o controle do câncer cérvico-uterino. As oficinas eram compostas de cinco encontros, cada um com um tema gerador e uma estratégia facilitadora a ser utilizada. Vasconcelos (1999) descreve detalhadamente a experiência com o grupo de desnutridos e com o trabalho de acompanhamento das famílias em situação de risco tomando por base o referencial da educação popular para a realização de pesquisa-ação, discutindo o papel e postura dos profissionais, a repercussão na comunidade e no serviço do trabalho desenvolvido. O uso do vídeo artesanal, feito com depoimentos de usuários dos serviços de saúde e pessoas da comunidade, é discutido como instrumento para a introdução de novos temas no debate dos grupos. Houve resistências de profissionais de saúde, que questionavam a capacidade dos técnicos envolvidos em lidar com emoções e afetos em grupos, a introdução de temas que não tinham diretamente a ver com a desnutrição e aspectos éticos da “exposição” de questões pessoais dos usuários que participaram do vídeo para o grupo. Os aspectos positivos da experiência referem-se à percepção do caráter coletivo do grupo, contribuindo para a superação do sentimento de fracasso e culpa, à construção de um sentimento de solidariedade e amizade para o enfrentamento dos problemas, à descoberta dos usuários como atores sociais, capazes de intervir, ter identidade própria, caminhar na direção da cidadania (Vasconcelos, 1999). Práticas alternativas de saúde também são objeto da ação da educação popular. Experiências com alimentação alternativa e remédios caseiros são descritas em Pernambuco, onde a Secretaria Estadual de Saúde, entre 1995 e 1998, capacitou equipes para trabalhar essas questões nos municípios. A capacitação era feita por meio de oficinas com quarenta horas de duração, utilizando a metodologia da Didática de Apropriação do Conhecimento (DACO), que buscava “resgatar e apoiar o conhecimento contido na tradição, refletindo-o à luz do conhecimento científico, construindo novos conhecimentos e recomendando o que já pode ser comprovado cientificamente ” (Pernambuco, 1998b, p.69). Freire Jr. (1993) descreve a utilização da prática grupal de automassagem num serviço público de saúde, de forma regular durante cerca de dois anos, como um meio de educação popular para a saúde. A música e a dança, como capoeira, danças afro-brasileiras, praticadas por grupos de adolescentes têm sido utilizadas na perspectiva da educação popular em saúde em diversos municípios, embora ainda não se tenham registrado essas experiências em publicações. O uso da televisão, ou mais especificamente da produção, exibição e discussão coletiva de vídeos com a comunidade também constitui um instrumento para a educação popular em saúde. Essas são exemplos das várias práticas de saúde que podem ser encontrados em todas as regiões do Brasil, demonstrando uma sensibilidade dos serviços para o desenvolvimento de ações educativas que sejam pautadas, originárias e recriadoras da cultura popular. As propostas da educação popular em saúde superam o próprio setor saúde ao buscar a formação crítica dos representantes da sociedade civil de caráter popular, colaborando para aumentar a consciência e compreensão das condições de vida e relações existentes com a saúde, subsidiando movimentos e lutas em defesa da qualidade de vida, cidadania e controle social (Valla & Stotz, 1993). Por outro lado, no momento em que atores sociais tomam consciência das causas mais profundas dos problemas de saúde e das relações sociais que os permeiam, podem apontar para a luta social de forma mais conseqüente, ficando também mais comprometidos com a saúde da comunidade. É nessa dicotomia que surgem as discussões sobre o apoio social. Lideranças, profissionais e agentes comunitários de saúde estão diretamente envolvidos nesse processo, estimulados a lutar pela saúde da comunidade e compelidos a buscar na própria comunidade formas de resolver e minorar algumas questões de saúde que não podem e nem devem esperar só pelo Estado. Valla (1999) destaca que o apoio social pode realizar a prevenção (e completaríamos também o cuidado) por meio da solidariedade e do apoio mútuo, mas também representa um tema de “discussão para os grupos sociais sobre o controle do seu próprio destino e autonomia das pessoas perante a hegemonia médica” (p.12). Nas suas mais diversas formas de expressão, a educação popular em saúde é também um compromisso político com as classes populares, com a luta por condições de vida e de saúde, pela cidadania e pelo controle social. Está diretamente ligada à valorização e à construção da participação popular. Tem uma perspectiva histórica, reconhecendo os pequenos passos e os movimentos das forças sociais em busca do controle de seu próprio destino (Stotz, 1994). O diagnóstico e planejamento participativo como instrumentos da educação popular em saúde O uso do diagnóstico e planejamento participativo como instrumentos de mobilização da comunidade, aumento da consciência crítica sobre os problemas e discussão de propostas para sua solução é descrito por Carvalho (1993b) e Raupp (2001). Discutindo a importância do diagnóstico participativo para a apropriação dos serviços de saúde pela população e para que esses conheçam realmente as suas reais necessidades, Carvalho (1993b) destaca que várias informações sobre uma das áreas programáticas do município do Rio de Janeiro, tidas como conclusões obvias pelos técnicos e gestores da saúde, quando vistas sobre a ótica da população, podem significar situações opostas. Assim, uma aparente “ampla” oferta de serviços na região não garante o acesso da população, acarretando protestos, denúncias e “outras formas de organizações no sentido de tentar resolver autonomamente as carências encontradas” (p.116). Quando melhor analisado, o acesso segundo o tipo de serviço oferecido e a demanda atendida mostra uma realidade completamente diferente da análise normalmente feita levando em conta apenas a capacidade instalada dos serviços (Carvalho, 1993b). Quando se trata de notificação de doenças, pode haver uma colaboração mútua com a incorporação da população no diagnóstico e na discussão dos dados epidemiológicos. A análise dos dados desagregados por áreas de um bairro, por favelas, por exemplo, pode localizar melhor o problema e possibilitar um planejamento mais coerente das ações de controle de uma epidemia. A autora destaca que o diagnóstico participativo poderia subsidiar o planejamento, possibilitando aos técnicos levar “em conta o ‘olhar’ do usuário, sua percepção e necessidade” (Carvalho, 1993b, p.126-7). Pelo lado dos usuários, por sua vez, o diagnóstico poderia contribuir para a formação de uma consciência crítica e para a capacitação sobre a forma de utilizá-lo como instrumento da luta política, podendo construir, a partir de um processo educativo, uma ação transformadora. Raupp (2001), analisando duas experiências de planejamento participativo na atenção básica à saúde, concebe essa forma de planejamento como um sistema de fala, de diálogo entre os saberes técnico e popular, em que sujeitos/atores profissionais de saúde e comunidades construiriam interpretações comuns da realidade e “compromissos e intenções, na busca de melhores níveis de qualidade de saúde e de vida para a população” (p.19). A autora discute a compreensão do processo participativo por profissionais e comunidades, destacando a concepção instrumental de participação dos primeiros, voltada para “resolver os conflitos” e conseguir o apoio da população aos projetos. A postura de superioridade dos técnicos está ligada à concepção da participação como colaboração, como algo separado das atividades do serviço, à qual o técnico adere “voluntariamente”. A coexistência de diferentes concepções de participação e planejamento entre os atores da comunidade e dos serviços relaciona-se provavelmente a um processo de amadurecimento e consolidação da proposta. Raupp discute os pontos positivos das experiências do planejamento participativo nos serviços e conclui destacando o seu potencial para a “compreensão crítica da realidade e intervenção criativa na mesma” (2001, p.19). As equipes de saúde da família, em muitos municípios, têm sido orientadas para o uso dessas técnicas tanto como forma de uma melhor apropriação da situação de vida e de saúde da população, quanto como um instrumento de construção de parcerias e de conscientização da população para reivindicar intervenções intersetoriais. Nesta linha, no Recife, a construção do diagnóstico tem sido um processo muito rico e elemento importante na relação educativa da comunidade e das equipes de saúde da família, bem como na formação dos núcleos de educação popular em saúde. A proposta municipal de educação popular em saúde no Recife As experiências com educação popular constituíram uma diretriz política da gestão da Secretaria Municipal de Saúde do Recife, propiciando condições favoráveis ao desenvolvimento, utilização e reformulação, na prática, da forma tradicional de atuar dos serviços de saúde. Nessa perspectiva, a gestão municipal da saúde construiu coletivamente a proposta municipal de educação popular em saúde, inicialmente com a participação dos técnicos dos distritos sanitários para, em seguida, passar pela discussão junto ao núcleo gestor, às comunidades e equipes envolvidas. A proposta desenvolvida teve como objetivo criar condições que favoreçam a participação crítica e criativa dos vários setores da sociedade na busca de melhoria da qualidade de vida e de saúde. A tarefa era desencadear um processo de discussão amplo, enfocando a educação popular em saúde que culminasse por envolver as 126 equipes de saúde da família, 1360 agentes comunitários de saúde e 780 agentes de saúde ambiental 3 3 Situação em junho de 2002., Na sua versão final, a proposta é composta de cinco projetos de ações: fortalecimento dos serviços de educação em saúde dos distritos sanitários, implantação dos núcleos de educação e cultura popular em saúde (Nuceps), capacitação continuada em educação popular em saúde, articulação intra-setorial e articulação intersetorial. A difusão e o desenvolvimento de metodologias e linguagens em educação popular em saúde, a produção de materiais educativos, construção de parcerias com a comunidade e garantia de infraestrutura e equipamentos para as ações educativas foram estratégias traçadas para a implantação da proposta. Na sua fase inicial, pretendia capacitar 12 equipes de saúde da família, número rapidamente ampliado, tendo sido realizadas 15 oficinas, envolvendo 34 equipes e 365 profissionais. A experiência de implantação teve resultados positivos com a consolidação dos trabalhos em 19 equipes de saúde da família, nas quais os grupos de usuários têm uma identidade própria, com nome e autonomia, sendo constituídos pelo ciclo da vida. Nestes, são discutidas questões sociais de forma ampla e não apenas relacionadas à doença. As equipes trabalham com técnicas corporais, como alongamento, relaxamento, exercícios leves e técnicas de estímulo à participação, trabalhando a saúde de uma forma mais ampla. Atividades diversas como oficinas de alimentação enriquecida, organização de movimentos junto à comunidade para resolução de problemas de lixo e esgotamento sanitário, atividades esportivas de promoção da saúde, organização de grupos comunitários no combate a dengue, dentre outras, refletem os primeiros resultados do projeto. Os núcleos de educação popular em saúde são compostos junto às equipes, sendo multifacetados, assumindo diferentes faces de acordo com as necessidades da comunidade. Foi esse conjunto de resultados que revelou uma maior integralidade das ações desencadeadas pela educação popular em saúde. O reconhecimento do usuário como cidadão nos grupos que não os estigmatizam como doentes, pois são ouvidos e estimulados a viver atividades de promoção da saúde (exercícios, alimentação, hábitos) e a lutar em defesa de melhores condições de vida, representa fato concreto dificilmente encontrado em equipes que não se referenciam na educação popular. As equipes também revelam uma visão mais integral no atendimento individual, com algumas delas trabalhando com terapias complementares e relacionando o atendimento diretamente com os grupos. Conclusão Analisando os artigos descritos e o caso de Recife, pode-se afirmar que a educação popular contribui para a inclusão de novos atores e abertura de canais de participação no nível local. Além de reforçar a participação social em si mesma, potencializa uma maior conscientização do povo sobre suas condições de vida, reforçando a organização popular e as lutas sociais pela saúde, que constituem eixo para a promoção e, conseqüentemente, a integralidade das ações em saúde. Outro aspecto a destacar é o potencial da educação popular em contribuir para que as equipes de saúde possam incorporar novas práticas. Sua concepção teórica, valorizando o saber do outro, entendendo que o conhecimento é um processo de construção coletiva, leva a um maior entendimento das ações de saúde como ações educativas. Vistas desta forma, as ações tendem a se aproximar da integralidade, assumindo como prática cotidiana a junção promoção-prevenção-assistência, o trabalho multiprofissional e intersetorial. Como foi dito por Vasconcelos (2003) 4 4 Mensagem de correio eletrônico à lista da Rede de Educação Popular e Saúde em um debate da Rede de Educação Popular e Saúde na internet, a educação popular não é uma atividade a mais a ser desenvolvida nos serviços de saúde, pois é uma atividade que redireciona toda a dinâmica do serviço, na medida em que fortalece a participação popular na discussão das suas várias iniciativas técnicas. A educação popular é um instrumento de reorganização institucional do setor saúde, Recebido para publicação em 21/10/03. Aprovado para publicação em 24/06/04. 1 Rua João Ramos, 285, apto.1601 Graças – Recife, PE 52.011-080 2 O termo Medicina é aqui empregado no seu sentido amplo, não se referindo apenas à Medicina científica ocidental moderna e cosmopolita (nota do autor) (Carvalho, 1993, p.134) 3 Situação em junho de 2002. 4 Mensagem de correio eletrônico à lista da Rede de Educação Popular e Saúde < 1 Rua João Ramos, 285, apto.1601 Graças - Recife, PE 52.011-080 2 O termo Medicina é aqui empregado no seu sentido amplo, não se referindo apenas à Medicina científica ocidental moderna e cosmopolita (nota do autor) (Carvalho, 1993, p.134) 3 Situação em junho de 2002.4 Mensagem de correio eletrônico à lista da Rede de Educação Popular e Saúde
Educação popular em saúde é um movi-mento histórico de mudanças, inicialmente pro-postas por profissionais de saúde insatisfeitoscom as práticas mercantilizadas e repetitivas dosserviços de saúde, que não atendiam às camadasmais necessitadas da população brasileira.
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Qual é a proposta da educação popular em saúde?
em enfermagem, como a proposta da educação popular em saúde. A incorporação desta proposta permite aos enfermeiros potencializar proposições em saúde e cuidado, orientando/reorientando suas práticas de ações em saúde11. Para isso, é importante que esse profissional considere o modo de ser do indivíduo e das coletividades, respeitando
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Qual a importância da educação popular no campo da Saúde?
desde os anos 70 a educação popular passou a se destacar no campo da saúde, por utilizar como instrumentos de cuidado, o diálogo e a escuta, permitindo a expressão do pensamento crítico e visões de mundo valorizando as trocas interpessoais entre o saber científico e o popular, conhecer sobre seu processo saúde-doença e o autocuidado.
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Qual a importância da Educação em saúde?
REVISÃO REVIEW Compreendendo a educação popular em saúde: um estudo na literatura brasileira Understanding popular health education: a review of the brazilian literature Luciano Bezerra Gomes I, II ; Emerson Elias Merhy III I Centro de Ciências Médicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil II Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba, João Pessoa, Brasil III Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil Correspondência RESUMO O artigo revisa a produção acadêmica brasileira sobre a educação popular em saúde, matriz teórica que agrega um conjunto relevante de pesquisadores e militantes políticos na saúde coletiva brasileira.
Caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, de nível exploratório e de caráter analítico. Com base em pesquisa bibliográfica no SciELO e em livros e capítulos de livros, elaboramos uma sistematização da produção da educação popular em saúde, apresentando um resgate do processo histórico de constituição da educação popular em saúde como fruto da atuação de diversos movimentos sociais, uma descrição das características gerais da educação popular em saúde, suas grandes pautas, a maneira como os autores desta perspectiva compreendem a atuação educativa dos serviços de saúde junto à população, suas críticas e disputas com o modo hegemônico de se organizar a educação e a atenção à saúde, bem como algumas contribuições que agregam aos que se propõem a seguir suas bases e preceitos.
Educação em Saúde; Participação Comunitária; Pesquisa Qualitativa ABSTRACT This article reviews the Brazilian literature on popular health education, a theoretical area that includes a relevant group of the country’s public health researchers and political activists.
- This was a qualitative, exploratory, analytical study.
- Based on a search in the SciELO database and books and book chapters, we systematized the academic output on popular health education in Brazil.
- The article discusses the historical process in which popular health education was constructed by various social movements.
We further analyze the general characteristics of popular health education and its main agendas, the ways by which authors with this perspective view the educational work of health services for the population, and their critiques and disputes with the hegemonic approach to the organization of education and health care.
Finally, we identify several additional contributions to popular health education’s foundations and principles. Health Education; Consumer Participation; Qualitative Research O campo da saúde no Brasil constituiu-se como um terreno de intensos debates quando toma por foco a organização das políticas públicas para esta área.
São muitos os sujeitos políticos que, com distintas inserções institucionais, constroem formulações no intuito de disputar nessa arena. Entretanto, em relação à maneira como se posicionam e no modo como são construídas as formulações, muitas vezes essas disputas ficam relativamente veladas.
Por um lado, o fato de a saúde coletiva brasileira ter se fortalecido como área de produção acadêmica, com diversos grupos de pesquisa vinculados a conceituadas instituições formadoras, leva a que os debates tomem um caráter mais “científico”. Nesse sentido, a dimensão política inerente às proposições que são realizadas se limita a uma “honestidade” teórica em que se reconhece a “parcialidade” do conhecimento produzido.
De certo modo, assumidas como perspectivas teóricas, as distintas formulações políticas se isolam entre as escolas, fomentando discussões que ficam no campo epistêmico em torno de aspectos metodológicos. Na produção científica em geral, mas no campo da saúde em especial, as produções acadêmicas não apenas estão se assentando em métodos que têm relação com a concepção de mundo dos seus pesquisadores; as escolhas dos autores, de certa forma, delimitam o campo político no qual eles pretendem debater.
- Não há delimitação de objeto de pesquisa, há sempre definição política em torno de saber em que disputas estamos entrando e com quem as estamos travando.
- Dessa forma, acreditamos que não debatemos apenas teorias, de fato, estamos sempre disputando a construção dos sujeitos, a produção da subjetividade dos atores presentes nas arenas.
A formulação acadêmica é, intensamente, produção de disputas 1,2, É dentro dessas perspectivas que desenvolvemos uma pesquisa, como parte do mestrado de um de seus autores junto ao Programa de Pós-graduação em Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O presente artigo é parte dessa pesquisa, e teve o papel, nela, de delimitar melhor o campo de produção da matriz teórica da educação popular em saúde, vista como fruto de refinamento de formulações teóricas da educação aplicadas à saúde e, principalmente, como ferramenta para a luta social de diversos sujeitos articulados em vários movimentos sociais, disputando os rumos das políticas sociais no Brasil e na América Latina.
A intenção de pesquisar entre autores da educação popular em saúde se dá em virtude do reconhecimento da força que tem esta matriz teórica no campo da saúde. Um indicador disso poderia ser a reconhecida influência de suas formulações entre pesquisadores da saúde presentes na academia brasileira.
- Suas construções teóricas têm apresentado a capacidade de produzir significado e constituir novos sujeitos nesse campo.
- Um segundo aspecto que nos leva a estudar essa corrente de pensamento se dá pelo fato de que muitas das formulações desenvolvidas nesse campo de produção têm sido agregadas em diversas experiências onde se tenta implementar o SUS.
Outro motivo é que, em parte das experiências de implementação do SUS que se basearam em suas formulações, diversos autores dessa matriz teórica se envolveram diretamente. Certamente, isso tendo refletido, em termos práxicos, em seus movimentos de (re)formulações teóricas.
Por fim, concordando com Gilles Deleuze 3, para quem só escrevemos algo porque nos é necessário, de certa forma, com este estudo, dialogamos com algumas das vivências em que participamos. Nas várias inserções como profissionais e militantes da saúde, a educação popular em saúde sempre tem se apresentado como uma das frentes que mais tem agregado novos sujeitos políticos na saúde; as obras de seus autores são intensamente acessadas por muitos companheiros e eles sempre se colocaram, direta ou indiretamente, como interlocutores necessários e privilegiados.
Algumas opções metodológicas Este estudo pode ser caracterizado como uma pesquisa de natureza qualitativa, de nível exploratório e de caráter analítico. Segundo Gil 4 (p.43), a pesquisa exploratória tem ” como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e idéias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores “.
Entre as diversas técnicas de pesquisa qualitativa possíveis para obtenção dos dados, foram utilizados métodos de pesquisa bibliográfica. A pesquisa bibliográfica é ” um apanhado geral sobre os principais trabalhos já realizados, revestidos de importância por serem capazes de fornecer dados atuais e relevantes relacionados com o tema ” 5 (p.12).
Para a realização desta pesquisa, inicialmente fizemos um levantamento bibliográfico preliminar, no qual tentamos identificar as características gerais da educação popular em saúde. Para tanto, realizamos uma revisão de artigos publicados até o mês de junho de 2009 em revistas indexadas e disponíveis na página virtual da base de dados da Scientific Electronic Library Online (SciELO).
Para a identificação do material, foram feitas buscas com a utilização das seguintes palavras-chave: educação popular em saúde; educação popular e saúde; educação em saúde; educação em saúde bucal; educação em saúde na escola; educação em saúde publica; educação em serviços de saúde; educação para saúde; educação sanitária; educação sanitária odontológica.
Foram identificados, inicialmente, 375 artigos, os quais tiveram seus títulos, autores e resumos lidos, resultando em uma segunda seleção de 90 artigos que poderiam apresentar relação com o objetivo deste levantamento bibliográfico preliminar e que foram selecionados para leitura exploratória, na tentativa de identificar os que tinham provável capacidade de contribuir com a caracterização da matriz teórica da educação popular em saúde.
Com base nisso, realizamos uma leitura seletiva e posterior leitura analítica dos 27 artigos mais relevantes para os objetivos deste estudo. Por meio desses artigos foram identificados livros e capítulos de livros, além de mais 10 artigos que não constavam na SciELO, que eram citados com mais relevância, e que levaram a uma segunda seleção de materiais que totalizaram 37 artigos, 15 livros e 25 capítulos de livros.
Todo esse material passou por etapas semelhantes de leituras exploratória, seletiva e analítica. As primeiras leituras foram necessárias para selecionar, entre toda a produção, os materiais que teriam potencial de contribuir com a caracterização das questões centrais para essa corrente de pensamento.
As leituras mais profundas foram realizadas já com a intenção de analisar e interpretar o material selecionado, com a finalidade de construir sínteses capazes de expor a construção teórica presente na educação popular em saúde. À medida que as leituras foram se sucedendo, realizamos apontamentos e fichamentos, os quais foram armazenados digitalmente, sendo posteriormente organizados logicamente a fim de permitir a redação do artigo 6,
Para realização da leitura analítica e interpretativa utilizamos como referência alguns aspectos teóricos da hermenêutica filosófica. Para essa perspectiva, a compreensão de algo é a própria interpretação, vista como uma condição do ser humano e não como resultado da aplicação criteriosa e padronizada de determinado método a priori,
Para tanto, essa corrente de pensamento admite que, para se produzir uma compreensão, é necessário reconhecer o engajamento dos sujeitos, pois é a partir do diálogo de suas concepções com aquilo que tenta entender que a compreensão é negociada, testando-se aí inclusive nossas idéias e preconcepções.
Não existe um significado objetivo, o qual tentamos alcançar nos distanciando do que somos para assimilá-lo imparcialmente. Sendo assim, não há uma interpretação correta das ações humanas e dos textos; não se desvenda algo; não se reproduz algo pela interpretação; sempre se constrói uma compreensão no diálogo com o que já se traz.
- Nesse sentido, a compreensão torna-se, em si, uma experiência prática, humana, deixando de ser um movimento em etapas de algo que é assimilado para depois ser aplicado 7,
- Em um texto em que analisa o debate que se trava entre Habermas e Gadamer, Minayo 8 (p.221-2, grifos da autora) retoma os pressupostos metodológicos da hermenêutica para as ciências sociais, quais seriam: ” a) o pesquisador tem que aclarar para si mesmo o contexto de seus entrevistados ou dos documentos a serem analisados.
Isso é importante porque o discurso expressa um saber compartilhado com outros, do ponto de vista moral, cultural e cognitivo. b) O estudioso do texto (o termo texto aqui é considerado no sentido amplo: relato, entrevista, história de vida, biografia etc.) deve supor a respeito de todos os documentos, por mais obscuros que possam parecer à primeira vista, um teor de racionalidade e de responsabilidade que não lhe permite duvidar.
O intérprete toma a sério, como sujeito responsável o ator social que está diante dele. c) O pesquisador só pode compreender o conteúdo significativo de um texto quando está em condições de tornar presentes as razões que o autor teria para elaborá-lo. d) Por outro lado, ao mesmo tempo em que o analista busca entender o texto, tem que julgá-lo e tomar posição em relação a ele.
Isto é, qualquer intérprete deve assumir determinadas questões que o texto lhe apresenta como problemas não resolvidos. E compenetrar-se do fato de que no labor da interpretação não existe última palavra. e) Toda interpretação bem sucedida é acompanhada pela expectativa de que o autor poderia compartilhar da explicação elaborada se pudesse penetrar também no mundo do pesquisador.
- Tanto o sujeito que comunica como aquele que o interpreta são marcados pela história, pelo seu tempo, pelo seu grupo.
- Portanto, o texto reflete esta relação de forma original “.
- Tentamos tomar esses passos como referência no trabalho com o material bibliográfico neste estudo.
- Também, consideramos algumas sugestões metodológicas propostas por Umberto Eco 9, em especial em relação à maneira de organizar a leitura de material bibliográfico e de como organizar os fichamentos, otimizando a etapa de redação da versão final do texto.
Com base nessa pesquisa bibliográfica, elaboramos uma sistematização da produção da educação popular em saúde, apresentando um resgate do processo histórico de constituição da educação popular em saúde como fruto da atuação de diversos movimentos sociais, uma descrição das características gerais da educação popular em saúde, suas grandes pautas, a maneira como os autores desta perspectiva compreendem a atuação educativa dos serviços de saúde junto à população, suas críticas e disputas com o modo hegemônico de se organizar a educação e a atenção à saúde, bem como algumas contribuições que agregam aos que se propõem a seguir suas bases e preceitos.
- Compreendendo a Educação Popular em Saúde O percurso das ações de educação em saúde no Brasil tem suas raízes nas primeiras décadas do século XX.
- As campanhas sanitárias da Primeira República e a expansão da medicina preventiva para algumas regiões do país, a partir da década de 1940, no Serviço Especial de Saúde Pública apresentavam estratégias de educação em saúde autoritárias, tecnicistas e biologicistas, em que as classes populares eram vistas e tratadas como passivas e incapazes de iniciativas próprias 10,
Até a primeira metade da década de 1970, a prática de atenção à saúde se resumia quase que exclusivamente à medicina privada, para os que podiam pagar; e nos hospitais da previdência social, para os trabalhadores que tinham carteira assinada, em ambas as situações desenvolvendo práticas de caráter basicamente curativas.
- As práticas preventivas e educativas em saúde se davam de forma isolada.
- As condições de saúde das classes pobres eram péssimas e não refletiam o crescimento econômico que o país apresentara nos últimos anos.
- A crescente insatisfação política desencadeou um processo de instabilidade social que obrigou o Estado a voltar um pouco sua atenção aos problemas mais básicos da população.
É a partir daí que, na tentativa de oferecer uma medicina curativa para os mais carentes, começa a ser implementada no Brasil uma proposta de medicina comunitária que empregava técnicas simplificadas, de baixo custo, e valorizava os aspectos preventivos da saúde.
Nessa política de saúde, são criados vários postos e centros de saúde em muitas regiões e cidades periféricas dos grandes e médios centros de desenvolvimento. Nesses espaços os profissionais de saúde se viram diante da necessidade de atuar próximos da realidade das pessoas que eles atendiam, e passaram a se integrar na dinâmica da vida das classes populares 11,
O lento processo de abertura política do país se deu a partir da segunda metade da década de 1970. Sem partidos e sindicatos onde se aglutinar para resistir e construir um novo modelo para a sociedade, a população busca novas formas de se organizar. A Igreja Católica, em virtude das formulações dos teóricos da teologia da libertação e por escapar em alguns aspectos da rede direta de repressão mobilizada pelo Estado, foi uma das instituições que permitiu a reunião de pessoas com objetivos transformadores e possibilitou trocas de experiências entre diversas áreas do conhecimento e segmentos da sociedade.
Nesse período, foram muitos os movimentos nos quais os profissionais de saúde se engajaram, vários deles baseados em uma relação menos vertical entre os profissionais e a sociedade, inspirados nos conceitos da educação popular, sistematizados inicialmente por Paulo Freire e depois se abrindo toda uma área de produção de conhecimentos vinculados às suas práticas, denominada educação popular em saúde 12,
O processo de reforma sanitária se dá por meio de várias lutas políticas e institucionais que se intensificaram durante toda a década de 1980, contando com a participação de vários profissionais que haviam desenvolvido experiências inovadoras na organização da atenção à saúde, muitos dos quais passaram a ocupar posições de gestão em algumas administrações públicas mais progressistas.
- Esse movimento também contou com a colaboração de algumas lideranças políticas e de organizações da sociedade civil.
- No ano de 1986, realizou-se a VIII Conferência Nacional de Saúde, grande marco político e teórico do processo de reestruturação da saúde pública da década de 1980.
- Com base nas propostas surgidas lá, criou-se, em 1987, o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), que garantiu o atendimento universal nos serviços de atenção básica e rede de hospitais públicos e conveniados, iniciando um processo de descentralização de poder e desconcentração de recursos ao fortalecer as gestões estaduais 13,14,
A Constituição Federal de 1988 afirma, no seu art.196 15, que a saúde é um direito universal e responsabiliza o Estado pela realização de políticas públicas intersetoriais que a garantam. Com ela, foi criado o Sistema Único de Saúde, que foi regulamentado com a Lei nº.8.080 16, de 19 de setembro de 1990, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, que definia como alguns dos princípios e diretrizes do SUS: universalidade; integralidade; eqüidade; participação da comunidade; descentralização político-administrativa; regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde.
Alguns aspectos de sua regulamentação passaram por vetos presidenciais, e foram revistos a partir da Lei nº.8.142 17, ainda em 1990, em especial os que tratam da participação popular na gestão e controle do sistema. A década de 1990 foi de lutas pela efetiva implementação e expansão do SUS e foi marcada por várias conferências de saúde municipais, estaduais e nacionais, além da regulamentação mais detalhada da estrutura e funcionamento do SUS por meio de inúmeras portarias e leis, das normas operacionais básicas e de assistência à saúde 14,
Em 1991, profissionais de saúde, lideranças de movimentos sociais e pesquisadores envolvidos em diversas experiências que se baseavam nos princípios da educação popular se organizaram em torno da Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde, que foi constituída no I Encontro Nacional de Educação Popular em Saúde, ocorrido em São Paulo.
Em 1998, a Articulação muda de nome para Rede de Educação Popular e Saúde, a qual passa a representar um espaço importante de articulação política, de troca de experiências e de formulação de teorias e de propostas alternativas para o funcionamento dos serviços de saúde. Segundo Stotz et al.18 (p.53): ” a unidade de propósitos dos participantes do movimento consiste em trazer, para o campo da saúde, a contribuição do pensamento freiriano, expressa numa pedagogia e concepção de mundo centrada no diálogo, na problematização e na ação comum entre profissionais e população.
É importante ressaltar, na identidade do pensamento de Paulo Freire e a dos participantes do movimento de educação popular e saúde, a convergência de ideologias aparentemente díspares, quais sejam, o cristianismo, o humanismo e socialismo “. No ano de 2003, com o auxílio do Ministério da Saúde no primeiro ano do governo Lula, realizou-se uma nova configuração entre os movimentos sociais que se articulavam em torno da luta pela saúde.
Em uma parceria com a Rede de Educação Popular e Saúde, realizaram-se encontros estaduais que culminaram em um encontro nacional no qual se constituiu a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, que ficou conhecida por ANEPS 19, A Rede de Educação Popular e Saúde continuou a existir de forma autônoma e, a partir de articulações provenientes de seus membros, também constitui-se a Rede de Estudos sobre Espiritualidade no Trabalho em Saúde e na Educação Popular.
Essa rede agrega sujeitos que, participando ou não das outras articulações, se interessam em aprofundar-se na temática da espiritualidade em saúde. Nos últimos anos, o Ministério da Saúde tem apresentado setores específicos para construção de políticas e incentivo a atividades no campo da educação popular em saúde, e também foi criado um grupo de trabalho específico junto à Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), órgão que congrega as entidades acadêmicas brasileiras que produzem no campo da saúde coletiva 20,21,
Esse sucinto resgate histórico se fez no intuito de demonstrar que, mais do que sujeitos que produzem uma reflexão acadêmica, no campo da educação popular em saúde, nos deparamos com coletivos que vêm desenvolvendo intensa militância política e social. Para muito além disso, são coletivos que apresentam grande dinamicidade e que têm a capacidade de constituir redes de articulação poderosas em suas capilaridades.
Nesses movimentos foram sendo formuladas novas maneiras de se compreender e de realizar processos educativos no setor saúde. A educação em saúde é, muitas vezes, entendida como um modo de fazer as pessoas do povo mudarem seus hábitos para assimilarem práticas higiênicas e recomendações médicas que evitariam o desenvolvimento de um conjunto de doenças.
Entretanto, para os autores que se baseiam na educação popular, educar para a saúde é justamente ajudar a população a compreender as causas dessas doenças e a se organizar para superá-las 11, A educação popular toma como ponto de partida os saberes prévios dos educandos. Esses saberes vão sendo construídos pelas pessoas à medida que elas vão seguindo seus caminhos de vida e são fundamentais para que consigam superar, em diversas ocasiões, situações de muita adversidade.
A educação popular faz uma aposta pedagógica na ampliação progressiva da análise crítica da realidade por parte dos coletivos à proporção que eles sejam, por meio do exercício da participação popular, produtores de sua própria história 21,22, A educação popular, além de permitir a inclusão de novos atores no campo da saúde, fortalecendo a organização popular, permite também que as equipes de saúde ampliem suas práticas, dialogando com o saber popular 20,
A educação popular em saúde, assim, busca empreender uma relação de troca de saberes entre o saber popular e o científico, em que ambos têm a enriquecer reciprocamente 11, Segundo diversos autores, essa proposta torna-se cada vez mais necessária, à medida que foi sendo produzido um distanciamento cultural entre as instituições de saúde e a população, fazendo com que uns não compreendam o modo como os outros operam.
A educação popular em saúde tem como balizador ético-político os interesses das classes populares, cada vez mais heterogêneas, considerando os movimentos sociais locais como seus interlocutores preferenciais 23, A educação popular em saúde busca não apenas a construção de uma consciência sanitária capaz de reverter o quadro de saúde da população, mas a intensificação da participação popular radicalizando a perspectiva democratizante das políticas públicas.
- Para alguns autores, ela representa um modo brasileiro de se fazer promoção da saúde 21,
- Atualmente, a convivência nos serviços de saúde e os meios de comunicação de larga escala têm representado as grandes conexões que permitem o desenvolvimento de relações educativas entre os trabalhadores de saúde e a população 12,
Contribuições da educação popular para a educação em saúde As análises realizadas com base na educação popular apontam para a leitura de que a medicina não tem se dedicado a compreender os saberes, estratégias e significados que as classes populares desenvolvem diante dos processos de adoecimento para, a partir daí, estruturar modos de agir que integrem o saber popular e os conhecimentos técnico-científicos.
Via de regra, ou se confia no bom senso do profissional de saúde ou se produzem trabalhadores específicos para desenvolver medidas sanitárias desarticuladas dos atendimentos individuais, gerando pouco impacto na situação de saúde dos coletivos. Contrapondo-se a isso, a educação em saúde tem sido o setor que tem feito buscas no sentido de superar tais práticas, desenvolvendo diversas estratégias de diálogo entre os pensares e fazeres da população e dos profissionais de saúde 12,
Entretanto, hegemonicamente, as ações de educação em saúde têm se apresentado como importantes instrumentos de dominação e de responsabilização dos indivíduos pelas suas condições de vida 20, Para superar tal situação, propõe-se reorientar as práticas de saúde, de modo que a educação em saúde deixe de ser apenas mais uma oferta pontual dos serviços para ser algo inerente às suas práticas, construindo assim a participação popular no seu cotidiano 12,21,
Para Valla et al.24, a rede pública de serviços de saúde existente é muito importante para a manutenção da saúde das classes populares, e isto é reconhecido por elas; entretanto, segundo estes autores, há também a concepção de que muitas questões essenciais à sua saúde não podem ser solucionadas nestes serviços quando funcionam do modo como tradicionalmente eles têm se estruturado.
Nesse contexto, afirmam que a população vem apontando outras formas de se organizar para solucionar seus problemas de saúde, aliviar o sofrimento e construir formas terapêuticas de cuidado integrais. Os usuários têm, cada vez mais, buscado práticas tidas como “alternativas” que permitam compreendê-los e impactar em melhorias de saúde de forma integral.
E embora existam diversas práticas que se colocam com tal perspectiva, muitas delas não estão disponíveis nos serviços de saúde ou estão apenas à disposição de parcelas mais abastadas da população. Por isso, torna-se importante compreender e valorizar o modo como essas classes vêm construindo suas alternativas de enfrentamento dos problemas de saúde por meio de diversas estratégias 24,25,
Nessa perspectiva, a postura do profissional de saúde para com a medicina popular deveria ser de respeito e diálogo, identificando e apontando situações de que se tem conhecimento de malefícios causados à população por algumas técnicas e medicamentos populares, mas valorizando as práticas que representam uma sistematização de conhecimentos que vão se acumulando ao longo de várias gerações.
- Seria relevante salientar o papel de diversos agentes informais de saúde, os quais apresentam grande respaldo popular e que portam saberes baseados em uma forte cultura, a qual se aprende na dinâmica social.
- Esses atores podem apresentar alto poder educativo, como os erveiros, as parteiras e as rezadeiras; entretanto, há pessoas que buscam ganhos financeiros, como renomados balconistas de farmácias e práticos odontológicos, que podem ser orientados para evitar danos à população corrigindo eventual má técnica 11,
Práticas como o uso de chás têm sido bastante comuns em áreas de serviços de atenção básica, sendo compreendidas como medidas de autocuidado, com grande autonomia da população para isto 26, Além de seu caráter terapêutico, segundo Celerino Carriconde 27, o uso de plantas medicinais apresenta relevância: (a) antropológica, por resgatar os saberes populares e, assim, elevar a auto-estima de populações, muitas vezes marginalizadas; (b) pedagógica, por permitir a instituição de uma relação dialógica entre trabalhadores de saúde e usuários que dominam os usos destas plantas medicinais; (c) econômica, permitindo o acesso ao medicamento fitoterápico; (d) ecológica, garantindo a manutenção de plantas que em muitas situações vêm sendo eliminadas pelas plantações com interesse meramente lucrativo.
A esse conjunto de valores, acrescentamos aqui a sua relevância social e política, pois, para conseguir as plantas, geralmente as pessoas as procuram junto aos seus vizinhos, fortalecendo a rede de apoio social e permitindo a discussão sobre o adoecimento e estratégias de sua superação na e pela comunidade.
A relação de diálogo diante de práticas como a fitoterapia é relevante, pois identificando os usos das plantas por parte da população, os profissionais podem enriquecer seus arsenais terapêuticos; ao mesmo tempo, podem orientar algumas incorreções no manejo de plantas medicinais que já foram cientificamente comprovadas, como efeitos adversos e contra-indicações de determinadas substâncias.
Essa relação permitiria o surgimento de um terceiro saber, fruto da interação entre os conhecimentos dos profissionais de saúde e da população 28, Outra ação educativa muito comum são as palestras, modo mais freqüente de realização de práticas coletivas em serviços de saúde. Elas precisariam ser reorientadas para que, ao invés do repasse de normas e orientações de higiene e boas condutas, tais iniciativas se apresentassem como oportunidades de diálogo entre trabalhadores e usuários, em que os aspectos coletivos da dinâmica comunitária pudessem ser enfatizados 11,
A formação de grupos de pessoas com determinadas características que as aproximam, seja uma condição de vida, como pertencer a certa faixa etária, ou ser portador de determinada doença, é estratégia também comumente utilizada para desenvolver processos de educação nas unidades de saúde.
Um exemplo é a realização de cursos de gestantes que terão seus primeiros filhos, para trocar informações com mulheres experientes e, a partir daí, desenvolver um processo de discussão das condições comuns entre estas mulheres. Nem todos os grupos, entretanto, encerrariam a mesma capacidade educativa.
Seria preciso, para criar um grupo, primeiro identificar os interesses que mobilizam e os problemas mais relevantes de uma população. Em algumas situações, seria interessante, por exemplo, estruturar um curso sobre determinada temática como mote para se iniciar um grupo com as pessoas envolvidas nestas atividades 11,
Nos grupos organizados a partir de patologias específicas, sua força estaria não no foco na doença, e sim na circulação de emoções, nas trocas que se efetuam no compartilhamento de medos, tristezas, dores e afetações de diferentes modos que se desenvolvem no processo de adoecimento e cura. A circulação desses afetos favoreceria o fortalecimento dos laços e vínculos sociais 25,
Uma estratégia muitas vezes vista como interessante é a exposição na unidade de saúde de fotos em que se identificam problemas ou onde se registram atuações coletivas da população para resolver determinadas questões, como um mutirão. Em outros casos, expor frases de pessoas da comunidade que tenham a ver com alguma característica da dinâmica social local.
Tais medidas visam a estimular as pessoas a pensarem e dialogarem quando vêm à unidade de saúde, quaisquer que tenham sido os motivos que as trouxeram 11, Estratégias de realização de diagnóstico e planejamento participativos das ações de saúde podem ser vistas como relevantes para mobilização e conscientização da população, mas também como necessários para que a perspectiva dos moradores possa corrigir distorções criadas pela perspectiva tecnicista, que muitas vezes leva a equívocos relevantes por parte dos profissionais de saúde.
Nesse sentido, o diagnóstico e planejamento participativos representariam uma possibilidade de ampliação do diálogo entre o saber popular e o saber técnico-científico 20, Em relação às ações coletivas realizadas fora do serviço de saúde, afirma-se que elas variam desde as mais “técnicas” até as mais “políticas”.
- Nelas, as equipes de saúde podem ter caráter mais diretivo ou serem praticamente convocadas pela população para participar.
- Quanto mais autônomas e mais voltadas para processos coletivos da dinâmica de vida, geralmente mais politizada estaria a população.
- Entretanto, como as ações coletivas, independentemente de quem as coordena ou do que as motiva, podem tanto promover desenvolvimento social como dificultá-lo, seria importante que fossem bem preparadas e que se tomassem os encaminhamentos adequados para que se desenvolva seu potencial educativo.
Geralmente, os grupos que são formados pela população se apresenta com características de prestadores de serviços, de ações reivindicatórias ou de realização de mutirões 11, Uma possibilidade desafiadora seria atuar na perspectiva do duplo caminho onde, ao mesmo tempo em que se reivindica e se responsabiliza os governantes, tenta-se solucionar os problemas com os recursos que consegue mobilizar autonomamente 29,
Progressivamente, entretanto, a criação de grupos e movimentos específicos de saúde foi deixando de ser a estratégia prioritária desenvolvida pelas classes populares, passando a ser mais comum a estruturação de grupos que discutem o tema da saúde diversificando a atuação dentro de organizações mais amplas das classes trabalhadoras 11,
Um desafio que se reconhece é que, além da atuação junto aos grupos da população, muitas vezes se faz necessário que as equipes de saúde desenvolvam ações políticas junto a instituições locais e lideranças políticas; sejam as que podem estar relacionadas com o desenvolvimento da comunidade, ou então as que têm o papel de manter o serviço para o seu adequado funcionamento.
- A relação com essas lideranças deveria ser respeitosa, ao mesmo tempo em que se deveria ter clareza dos processos em negociação, a fim de evitar a manipulação das atividades dos serviços públicos de saúde por parte de grupos políticos com interesses privatistas 11,
- Um importante meio de comunicação que é proposto para ampliar a interlocução com a população é o rádio.
Além de apresentar elevado alcance, permitindo atingir um grande público de uma só vez, principalmente nas populações mais pobres, geralmente as emissoras de rádio estão acessíveis aos profissionais de saúde e permitem o diálogo com o ouvinte, dinamizando, articulando e aproximando o processo educativo da realidade das populações 11,
Essa estratégia tende a se tornar mais potente em virtude da grande expansão das rádios comunitárias ocorrida nos últimos anos em todo o país. Uma das ações vistas como relevante para permitir o diálogo e troca de saberes é a realização ou participação em mobilizações que estão ligadas diretamente ao lazer e à interação social, como a organização de festas e eventos comemorativos, bingos etc.
Tais ações fortaleceriam a felicidade como projeto de vida para populações que, geralmente, têm muito pouca oferta deste tipo nas áreas onde moram, e demonstrariam uma abertura da equipe para ampliar a concepção de saúde com que atua 26, Brinquedotecas, clubes da terceira idade, rádios comunitárias, oficinas de arte, música e dança, exibição de vídeos, teatros de mamulengo e de rua são algumas das ações no setor da cultura popular vistas como iniciativas que poderiam potencializar atividades na perspectiva da educação popular em saúde, e que vão para muito além dos muros dos serviços de saúde 20,
A educação popular em saúde ajudando a compreender e lidar com as iniciativas autônomas da população: as redes de apoio social no território Para diversos autores, problemas como o desemprego, a precarização das relações de trabalho, a iniqüidade na distribuição de renda, a violência e a retração de redes sociais contribuem para a intensificação de um ciclo que gira em torno da pobreza, isolamento e adoecimento, e têm levado ao desenvolvimento de um certo sofrimento difuso na população.
Esse sofrimento difuso pode elevar a demanda de atenção à saúde e demonstrar os limites do atual modo de se estruturar a atenção à saúde no Brasil 24,30, A atuação dos profissionais de saúde que se baseia na realização de procedimentos vem produzindo uma limitada oferta de ações para lidar com os problemas complexos que se apresentam 25,
- O sofrimento difuso se caracterizaria por ” uma sensação de mal-estar generalizado com uma diversidade de sintomas, tais como irritabilidade, insônia, nervosismo, ansiedade, angústia, dores no corpo, acrescido da falta de perspectiva de vida ” 31 (p.250).
- Uma das condutas mais comumente utilizadas diante dessas situações é a medicalização, tratando com benzodiazepínicos, por exemplo, o que não resolve o problema; leva à cronificação do quadro clínico, apresenta uma série de efeitos adversos e não permite a explicitação dos problemas de base, dificultando ainda mais o desenvolvimento de estratégias coletivas de superação dos problemas.
De acordo com Victor Valla (1996, apud Lacerda & Valla 25 ), os profissionais de saúde precisam reconhecer que, diante da dificuldade de se lidar com situações de sofrimento difuso, ” a crise de interpretação é nossa “. Para esse autor, por partirmos de idéias preconcebidas que consideramos portadoras de verdade, não escutamos adequadamente as falas da população, não nos atemos aos seus discursos, e não nos abrimos a compreender o modo como operam seus saberes.
Colocando nossos conhecimentos científicos como centro do processo de trabalho, e não a vida dos sujeitos, estaríamos construindo modos de operar o trabalho em saúde que se desconectam da realidade vivida pelas classes populares 12,24,25, Torna-se essencial compreender a dinâmica que a própria população tem estruturado em suas estratégias autônomas de produção de vida, evitando julgamentos morais por parte dos profissionais de saúde.
Nos últimos anos, por exemplo, as igrejas evangélicas têm representado uma das buscas mais comuns realizadas pelas classes populares. Ao mesmo tempo em que as igrejas podem estar relacionadas a práticas indesejáveis de disciplinarização 32 e controle 33, em algumas situações, para alguns autores, elas também se apresentariam como lugares: onde as pessoas podem ser acolhidas e cuidadas; que trabalham com as emoções e afetos, gerando sensação de pertencimento a coletivos; em que se constroem redes de solidariedade capazes de resolver problemas de âmbito financeiro e afetivo; onde se afirmam relações que se baseiam em valores às vezes contrários aos interesses gerais da sociedade capitalista que os oprime e com os quais os sujeitos não querem se identificar; também, onde se consegue encontrar explicações para as coisas desordenadas e que passam a dar sentido às suas vidas 24,31,34,35,36,
- Lacerda et al.34 chegam a identificar várias semelhanças entre os trabalhos desenvolvidos nas classes populares pelos pastores evangélicos e os papéis que vêm desempenhando os agentes comunitários de saúde das equipes de saúde da família.
- Sendo assim, seria importante construir um diálogo com os agentes religiosos presentes nos grupos sociais, independentemente da opção religiosa do profissional de saúde.
É relevante identificar o modo como essas instituições religiosas podem ou não representar e fortalecer buscas de melhorias para a vida das pessoas, e produzir as parcerias necessárias para minimizar possíveis propostas que tendam a dificultar a construção de alternativas coletivas para os problemas de saúde da população 11,34,
- Lacerda & Valla 30 consideram o apoio social como um trabalho que busca o autocuidado ou o desenvolvimento de ambientes saudáveis como uma das dimensões de práticas ou de sistemas de saúde que se orientam por meio da perspectiva da promoção da saúde.
- No conceito de apoio social, agrega-se um conjunto de atividades que podem ter resultados favoráveis no enfrentamento dos problemas de saúde-doença, e que se estruturam mediante diversas relações solidárias que se estabelecem entre os sujeitos.
Essas relações podem se desenvolver ao se mobilizarem sistematicamente o conjunto de recursos emocionais, materiais e de informação a partir de relações íntimas e familiares ou até em grupos sociais maiores. As várias estratégias que desenvolvem o apoio social buscam ajudar na constituição de sujeitos que tenham capacidade de definir os rumos de suas próprias vidas, de ampliar sua autonomia.
Essa situação leva os sujeitos a terem maior possibilidade de responder aos fatores estressantes e passam a lidar melhor com as adversidades da vida, levando a melhorias na saúde física e mental 24,25, Ao trabalhar com a concepção de que a origem das doenças, bem como a sua superação, necessariamente está relacionada com as emoções que são mobilizadas pelos sujeitos, o apoio social se suporta em abordagens que privilegiam a totalidade corpo-mente, não considerando estas como dimensões distintas dos sujeitos.
O apoio social apresenta caráter de reciprocidade, trazendo efeitos favoráveis para todos os envolvidos, estejam aparentemente oferecendo ou recebendo o apoio, fortalecendo a compreensão de que as pessoas necessitam umas das outras para construírem relações de cuidado integrais 24,29,
Nessa perspectiva, o apoio social se desenvolveria e se potencializaria por meio da articulação em uma rede social, que se configura como uma teia que agrega e conecta os indivíduos; uma teia de vínculos sociais que permite uma circulação dos recursos tangíveis e intangíveis mobilizados pelo apoio social.
Esse apoio desenvolvido em redes de solidariedade possibilitaria o fortalecimento da singularidade dos sujeitos e os tensionaria a serem portadores de projetos para a própria vida, além de que reforçaria laços que criam uma sensação de pertencimento coletivo, melhorando sua saúde de modo integral em âmbito individual e coletivo 25,37,
Reconhece-se que as redes de apoio social geralmente se desenvolvem com base em articulações autônomas dos usuários; mesmo assim, os profissionais de saúde poderiam potencializar o apoio social: ajudando a desarticular redes sociais prejudiciais; identificando as redes sociais que circundam os usuários e estão envolvidas no seu adoecimento ou podem ser utilizadas para facilitar o enfretamento de seus problemas; fortalecendo redes sociais positivas existentes; estimulando a configuração de novos arranjos coletivos entre a população e os recursos disponíveis.
Tais atitudes ajudariam no processo terapêutico ao tornar conscientes, para os usuários, processos muitas vezes não identificados pelos mesmos, e permitir aos profissionais atuar em campos ainda não explorados em sua intervenção. Dependendo da complexidade do problema, os próprios profissionais de saúde também precisariam estar articulados em redes que ampliassem o cuidado aos usuários e seus familiares 24,25,29,
- Sendo assim, a relação profissional de saúde/usuário poderia ser compreendida como produtora de apoio social, seja como apoio informativo ou emocional 25,
- O apoio informativo se estrutura na relação dialógica que se estabelece no trabalho em saúde, enquanto o apoio emocional se desenvolve a partir do modo como se configuram as relações baseando-se nas atitudes do profissional diante do usuário.
Na verdade, ambas as dimensões do apoio estão intrinsecamente articuladas, pertencendo a um mesmo processo, e elas poderiam ser potencializadas quando o profissional centra suas ações não nos conhecimentos que domina, e sim nas tecnologias leves do trabalho vivo operando em ato 38,
- Trataria-se de permitir que os afetos e afetações desencadeados na relação fizessem parte e orientassem as condutas do profissional de saúde 25,
- A Terapia Comunitária é uma técnica de trabalho com grupos que se baseia no relato da história de vida dos participantes e do modo como cada um lida com suas dificuldades do cotidiano.
Para alguns autores, o relato e a escuta atenta permitiria que as emoções circulassem e fossem ressignificadas pelos sujeitos, fortalecendo-os e aos processos coletivos em que se inserem. A Terapia Comunitária integraria, assim, as ações de prevenção e promoção à saúde que tomam como foco o sujeito e não as doenças 31,
Entretanto, é importante salientar que práticas de Terapia Comunitária não podem ser desenvolvidas de forma desarticulada de outros modos de luta social, para evitar que seu resultado seja mera resignação ou culpabilização dos sujeitos. Na análise de Lacerda & Valla 30, o apoio social se aproxima do paradigma ” sistema da dádiva “, que se estrutura na obrigatoriedade da tríade dar-receber-retribuir, fazendo com que os bens materiais e simbólicos possam fluir em trocas sistemáticas entre os diferentes laços e vínculos das redes sociais que se constituem.
Para fazer avançar a educação popular nos serviços de saúde Os próprios autores que produzem na perspectiva da educação popular em saúde reconhecem que há muitos avanços na expectativa dela se desenvolver junto aos serviços de saúde, entretanto, tais avanços não teriam ainda sido suficientes para mudar o modo como o modelo hegemônico vem sendo implantado, pois seria necessário que mais do que apenas alguns trabalhadores desempenhando este papel 21,
Haveria, entre os profissionais de saúde, a compreensão de que não é preciso aprender a fazer educação em saúde, bastando para tanto o seu conhecimento clínico; somaria-se a isto a pouca oferta de formação e de processos de educação permanente no conjunto dos municípios, fruto da inexistência de política com tal finalidade 20,
Tal situação estaria limitando o avanço das ações de educação popular em saúde. Seria necessário o desenvolvimento de políticas mais intensivas de formação de profissionais de saúde que considerassem a educação popular como método nas suas formações 21,
- É feita a crítica de que, muitas vezes, as experiências de educação popular em saúde são desenvolvidas apenas por iniciativa dos profissionais, sem que houvesse uma política específica de indução por parte dos gestores municipais, chegando mesmo a ocorrer resistências por parte destes 20,
- Diante dessas situações, seria importante construir estratégias de disputa dos distintos projetos políticos junto à sociedade.
Tal caminho se tornaria mais difícil, entretanto, quando encontramos os trabalhadores com vínculos empregatícios precários, situação ainda extremamente comum em diversas localidades, por fragilizar estes atores diante dos que ocupam posição de governo.
A tentativa de incorporar a educação popular à atenção à saúde nos grandes centros urbanos tem enfrentado tanto o poder político como o econômico dominante, hegemônicos na lógica de funcionamento dos serviços de saúde, como a injusta distribuição de recursos por parte do Estado, que na maioria das vezes não privilegia os setores sociais 12,
A expansão da educação popular em saúde exigiria que, aos movimentos desencadeados pelos trabalhadores nos serviços de saúde, se somassem iniciativas de gestores nas três esferas de governo 21, Colaboradores L.B. Gomes participou da concepção do projeto, realizou a pesquisa em bases de dados e sua análise, e elaborou a redação final do artigo.E.E.
Merhy participou da concepção do projeto, orientou a pesquisa em bases de dados e sua análise, revisou e orientou a redação final do artigo. Agradecimentos Os autores gostariam de agradecer a todos os integrantes da linha de pesquisa Micropolítica do Cuidado e o Trabalho em Saúde, da Pós-graduação em Clínica Médica, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelas contribuições inestimáveis nos debates realizados ao longo da elaboração desta pesquisa.
Correspondência: L.B. Gomes Departamento de Promoção da Saúde, Centro de Ciências Médicas Universidade Federal da Paraíba Cidade Universitária João Pessoa, PB 58051-900, Brasil Recebido em 24/Abr/2010 Versão final reapresentada em 04/Out/2010 Aprovado em 08/Out/2010 Correspondência: L.B.
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Qual a importância da expansão da educação popular em saúde?
REVISÃO REVIEW Compreendendo a educação popular em saúde: um estudo na literatura brasileira Understanding popular health education: a review of the brazilian literature Luciano Bezerra Gomes I, II ; Emerson Elias Merhy III I Centro de Ciências Médicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Brasil II Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba, João Pessoa, Brasil III Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil Correspondência RESUMO O artigo revisa a produção acadêmica brasileira sobre a educação popular em saúde, matriz teórica que agrega um conjunto relevante de pesquisadores e militantes políticos na saúde coletiva brasileira.
- Caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, de nível exploratório e de caráter analítico.
- Com base em pesquisa bibliográfica no SciELO e em livros e capítulos de livros, elaboramos uma sistematização da produção da educação popular em saúde, apresentando um resgate do processo histórico de constituição da educação popular em saúde como fruto da atuação de diversos movimentos sociais, uma descrição das características gerais da educação popular em saúde, suas grandes pautas, a maneira como os autores desta perspectiva compreendem a atuação educativa dos serviços de saúde junto à população, suas críticas e disputas com o modo hegemônico de se organizar a educação e a atenção à saúde, bem como algumas contribuições que agregam aos que se propõem a seguir suas bases e preceitos.
Educação em Saúde; Participação Comunitária; Pesquisa Qualitativa ABSTRACT This article reviews the Brazilian literature on popular health education, a theoretical area that includes a relevant group of the country’s public health researchers and political activists.
- This was a qualitative, exploratory, analytical study.
- Based on a search in the SciELO database and books and book chapters, we systematized the academic output on popular health education in Brazil.
- The article discusses the historical process in which popular health education was constructed by various social movements.
We further analyze the general characteristics of popular health education and its main agendas, the ways by which authors with this perspective view the educational work of health services for the population, and their critiques and disputes with the hegemonic approach to the organization of education and health care.
Finally, we identify several additional contributions to popular health education’s foundations and principles. Health Education; Consumer Participation; Qualitative Research O campo da saúde no Brasil constituiu-se como um terreno de intensos debates quando toma por foco a organização das políticas públicas para esta área.
São muitos os sujeitos políticos que, com distintas inserções institucionais, constroem formulações no intuito de disputar nessa arena. Entretanto, em relação à maneira como se posicionam e no modo como são construídas as formulações, muitas vezes essas disputas ficam relativamente veladas.
- Por um lado, o fato de a saúde coletiva brasileira ter se fortalecido como área de produção acadêmica, com diversos grupos de pesquisa vinculados a conceituadas instituições formadoras, leva a que os debates tomem um caráter mais “científico”.
- Nesse sentido, a dimensão política inerente às proposições que são realizadas se limita a uma “honestidade” teórica em que se reconhece a “parcialidade” do conhecimento produzido.
De certo modo, assumidas como perspectivas teóricas, as distintas formulações políticas se isolam entre as escolas, fomentando discussões que ficam no campo epistêmico em torno de aspectos metodológicos. Na produção científica em geral, mas no campo da saúde em especial, as produções acadêmicas não apenas estão se assentando em métodos que têm relação com a concepção de mundo dos seus pesquisadores; as escolhas dos autores, de certa forma, delimitam o campo político no qual eles pretendem debater.
- Não há delimitação de objeto de pesquisa, há sempre definição política em torno de saber em que disputas estamos entrando e com quem as estamos travando.
- Dessa forma, acreditamos que não debatemos apenas teorias, de fato, estamos sempre disputando a construção dos sujeitos, a produção da subjetividade dos atores presentes nas arenas.
A formulação acadêmica é, intensamente, produção de disputas 1,2, É dentro dessas perspectivas que desenvolvemos uma pesquisa, como parte do mestrado de um de seus autores junto ao Programa de Pós-graduação em Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O presente artigo é parte dessa pesquisa, e teve o papel, nela, de delimitar melhor o campo de produção da matriz teórica da educação popular em saúde, vista como fruto de refinamento de formulações teóricas da educação aplicadas à saúde e, principalmente, como ferramenta para a luta social de diversos sujeitos articulados em vários movimentos sociais, disputando os rumos das políticas sociais no Brasil e na América Latina.
A intenção de pesquisar entre autores da educação popular em saúde se dá em virtude do reconhecimento da força que tem esta matriz teórica no campo da saúde. Um indicador disso poderia ser a reconhecida influência de suas formulações entre pesquisadores da saúde presentes na academia brasileira.
- Suas construções teóricas têm apresentado a capacidade de produzir significado e constituir novos sujeitos nesse campo.
- Um segundo aspecto que nos leva a estudar essa corrente de pensamento se dá pelo fato de que muitas das formulações desenvolvidas nesse campo de produção têm sido agregadas em diversas experiências onde se tenta implementar o SUS.
Outro motivo é que, em parte das experiências de implementação do SUS que se basearam em suas formulações, diversos autores dessa matriz teórica se envolveram diretamente. Certamente, isso tendo refletido, em termos práxicos, em seus movimentos de (re)formulações teóricas.
- Por fim, concordando com Gilles Deleuze 3, para quem só escrevemos algo porque nos é necessário, de certa forma, com este estudo, dialogamos com algumas das vivências em que participamos.
- Nas várias inserções como profissionais e militantes da saúde, a educação popular em saúde sempre tem se apresentado como uma das frentes que mais tem agregado novos sujeitos políticos na saúde; as obras de seus autores são intensamente acessadas por muitos companheiros e eles sempre se colocaram, direta ou indiretamente, como interlocutores necessários e privilegiados.
Algumas opções metodológicas Este estudo pode ser caracterizado como uma pesquisa de natureza qualitativa, de nível exploratório e de caráter analítico. Segundo Gil 4 (p.43), a pesquisa exploratória tem ” como principal finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e idéias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores “.
- Entre as diversas técnicas de pesquisa qualitativa possíveis para obtenção dos dados, foram utilizados métodos de pesquisa bibliográfica.
- A pesquisa bibliográfica é ” um apanhado geral sobre os principais trabalhos já realizados, revestidos de importância por serem capazes de fornecer dados atuais e relevantes relacionados com o tema ” 5 (p.12).
Para a realização desta pesquisa, inicialmente fizemos um levantamento bibliográfico preliminar, no qual tentamos identificar as características gerais da educação popular em saúde. Para tanto, realizamos uma revisão de artigos publicados até o mês de junho de 2009 em revistas indexadas e disponíveis na página virtual da base de dados da Scientific Electronic Library Online (SciELO).
Para a identificação do material, foram feitas buscas com a utilização das seguintes palavras-chave: educação popular em saúde; educação popular e saúde; educação em saúde; educação em saúde bucal; educação em saúde na escola; educação em saúde publica; educação em serviços de saúde; educação para saúde; educação sanitária; educação sanitária odontológica.
Foram identificados, inicialmente, 375 artigos, os quais tiveram seus títulos, autores e resumos lidos, resultando em uma segunda seleção de 90 artigos que poderiam apresentar relação com o objetivo deste levantamento bibliográfico preliminar e que foram selecionados para leitura exploratória, na tentativa de identificar os que tinham provável capacidade de contribuir com a caracterização da matriz teórica da educação popular em saúde.
Com base nisso, realizamos uma leitura seletiva e posterior leitura analítica dos 27 artigos mais relevantes para os objetivos deste estudo. Por meio desses artigos foram identificados livros e capítulos de livros, além de mais 10 artigos que não constavam na SciELO, que eram citados com mais relevância, e que levaram a uma segunda seleção de materiais que totalizaram 37 artigos, 15 livros e 25 capítulos de livros.
Todo esse material passou por etapas semelhantes de leituras exploratória, seletiva e analítica. As primeiras leituras foram necessárias para selecionar, entre toda a produção, os materiais que teriam potencial de contribuir com a caracterização das questões centrais para essa corrente de pensamento.
- As leituras mais profundas foram realizadas já com a intenção de analisar e interpretar o material selecionado, com a finalidade de construir sínteses capazes de expor a construção teórica presente na educação popular em saúde.
- À medida que as leituras foram se sucedendo, realizamos apontamentos e fichamentos, os quais foram armazenados digitalmente, sendo posteriormente organizados logicamente a fim de permitir a redação do artigo 6,
Para realização da leitura analítica e interpretativa utilizamos como referência alguns aspectos teóricos da hermenêutica filosófica. Para essa perspectiva, a compreensão de algo é a própria interpretação, vista como uma condição do ser humano e não como resultado da aplicação criteriosa e padronizada de determinado método a priori,
Para tanto, essa corrente de pensamento admite que, para se produzir uma compreensão, é necessário reconhecer o engajamento dos sujeitos, pois é a partir do diálogo de suas concepções com aquilo que tenta entender que a compreensão é negociada, testando-se aí inclusive nossas idéias e preconcepções.
Não existe um significado objetivo, o qual tentamos alcançar nos distanciando do que somos para assimilá-lo imparcialmente. Sendo assim, não há uma interpretação correta das ações humanas e dos textos; não se desvenda algo; não se reproduz algo pela interpretação; sempre se constrói uma compreensão no diálogo com o que já se traz.
Nesse sentido, a compreensão torna-se, em si, uma experiência prática, humana, deixando de ser um movimento em etapas de algo que é assimilado para depois ser aplicado 7, Em um texto em que analisa o debate que se trava entre Habermas e Gadamer, Minayo 8 (p.221-2, grifos da autora) retoma os pressupostos metodológicos da hermenêutica para as ciências sociais, quais seriam: ” a) o pesquisador tem que aclarar para si mesmo o contexto de seus entrevistados ou dos documentos a serem analisados.
Isso é importante porque o discurso expressa um saber compartilhado com outros, do ponto de vista moral, cultural e cognitivo. b) O estudioso do texto (o termo texto aqui é considerado no sentido amplo: relato, entrevista, história de vida, biografia etc.) deve supor a respeito de todos os documentos, por mais obscuros que possam parecer à primeira vista, um teor de racionalidade e de responsabilidade que não lhe permite duvidar.
O intérprete toma a sério, como sujeito responsável o ator social que está diante dele. c) O pesquisador só pode compreender o conteúdo significativo de um texto quando está em condições de tornar presentes as razões que o autor teria para elaborá-lo. d) Por outro lado, ao mesmo tempo em que o analista busca entender o texto, tem que julgá-lo e tomar posição em relação a ele.
Isto é, qualquer intérprete deve assumir determinadas questões que o texto lhe apresenta como problemas não resolvidos. E compenetrar-se do fato de que no labor da interpretação não existe última palavra. e) Toda interpretação bem sucedida é acompanhada pela expectativa de que o autor poderia compartilhar da explicação elaborada se pudesse penetrar também no mundo do pesquisador.
Tanto o sujeito que comunica como aquele que o interpreta são marcados pela história, pelo seu tempo, pelo seu grupo. Portanto, o texto reflete esta relação de forma original “. Tentamos tomar esses passos como referência no trabalho com o material bibliográfico neste estudo. Também, consideramos algumas sugestões metodológicas propostas por Umberto Eco 9, em especial em relação à maneira de organizar a leitura de material bibliográfico e de como organizar os fichamentos, otimizando a etapa de redação da versão final do texto.
Com base nessa pesquisa bibliográfica, elaboramos uma sistematização da produção da educação popular em saúde, apresentando um resgate do processo histórico de constituição da educação popular em saúde como fruto da atuação de diversos movimentos sociais, uma descrição das características gerais da educação popular em saúde, suas grandes pautas, a maneira como os autores desta perspectiva compreendem a atuação educativa dos serviços de saúde junto à população, suas críticas e disputas com o modo hegemônico de se organizar a educação e a atenção à saúde, bem como algumas contribuições que agregam aos que se propõem a seguir suas bases e preceitos.
Compreendendo a Educação Popular em Saúde O percurso das ações de educação em saúde no Brasil tem suas raízes nas primeiras décadas do século XX. As campanhas sanitárias da Primeira República e a expansão da medicina preventiva para algumas regiões do país, a partir da década de 1940, no Serviço Especial de Saúde Pública apresentavam estratégias de educação em saúde autoritárias, tecnicistas e biologicistas, em que as classes populares eram vistas e tratadas como passivas e incapazes de iniciativas próprias 10,
Até a primeira metade da década de 1970, a prática de atenção à saúde se resumia quase que exclusivamente à medicina privada, para os que podiam pagar; e nos hospitais da previdência social, para os trabalhadores que tinham carteira assinada, em ambas as situações desenvolvendo práticas de caráter basicamente curativas.
- As práticas preventivas e educativas em saúde se davam de forma isolada.
- As condições de saúde das classes pobres eram péssimas e não refletiam o crescimento econômico que o país apresentara nos últimos anos.
- A crescente insatisfação política desencadeou um processo de instabilidade social que obrigou o Estado a voltar um pouco sua atenção aos problemas mais básicos da população.
É a partir daí que, na tentativa de oferecer uma medicina curativa para os mais carentes, começa a ser implementada no Brasil uma proposta de medicina comunitária que empregava técnicas simplificadas, de baixo custo, e valorizava os aspectos preventivos da saúde.
- Nessa política de saúde, são criados vários postos e centros de saúde em muitas regiões e cidades periféricas dos grandes e médios centros de desenvolvimento.
- Nesses espaços os profissionais de saúde se viram diante da necessidade de atuar próximos da realidade das pessoas que eles atendiam, e passaram a se integrar na dinâmica da vida das classes populares 11,
O lento processo de abertura política do país se deu a partir da segunda metade da década de 1970. Sem partidos e sindicatos onde se aglutinar para resistir e construir um novo modelo para a sociedade, a população busca novas formas de se organizar. A Igreja Católica, em virtude das formulações dos teóricos da teologia da libertação e por escapar em alguns aspectos da rede direta de repressão mobilizada pelo Estado, foi uma das instituições que permitiu a reunião de pessoas com objetivos transformadores e possibilitou trocas de experiências entre diversas áreas do conhecimento e segmentos da sociedade.
Nesse período, foram muitos os movimentos nos quais os profissionais de saúde se engajaram, vários deles baseados em uma relação menos vertical entre os profissionais e a sociedade, inspirados nos conceitos da educação popular, sistematizados inicialmente por Paulo Freire e depois se abrindo toda uma área de produção de conhecimentos vinculados às suas práticas, denominada educação popular em saúde 12,
O processo de reforma sanitária se dá por meio de várias lutas políticas e institucionais que se intensificaram durante toda a década de 1980, contando com a participação de vários profissionais que haviam desenvolvido experiências inovadoras na organização da atenção à saúde, muitos dos quais passaram a ocupar posições de gestão em algumas administrações públicas mais progressistas.
Esse movimento também contou com a colaboração de algumas lideranças políticas e de organizações da sociedade civil. No ano de 1986, realizou-se a VIII Conferência Nacional de Saúde, grande marco político e teórico do processo de reestruturação da saúde pública da década de 1980. Com base nas propostas surgidas lá, criou-se, em 1987, o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), que garantiu o atendimento universal nos serviços de atenção básica e rede de hospitais públicos e conveniados, iniciando um processo de descentralização de poder e desconcentração de recursos ao fortalecer as gestões estaduais 13,14,
A Constituição Federal de 1988 afirma, no seu art.196 15, que a saúde é um direito universal e responsabiliza o Estado pela realização de políticas públicas intersetoriais que a garantam. Com ela, foi criado o Sistema Único de Saúde, que foi regulamentado com a Lei nº.8.080 16, de 19 de setembro de 1990, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, que definia como alguns dos princípios e diretrizes do SUS: universalidade; integralidade; eqüidade; participação da comunidade; descentralização político-administrativa; regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde.
Alguns aspectos de sua regulamentação passaram por vetos presidenciais, e foram revistos a partir da Lei nº.8.142 17, ainda em 1990, em especial os que tratam da participação popular na gestão e controle do sistema. A década de 1990 foi de lutas pela efetiva implementação e expansão do SUS e foi marcada por várias conferências de saúde municipais, estaduais e nacionais, além da regulamentação mais detalhada da estrutura e funcionamento do SUS por meio de inúmeras portarias e leis, das normas operacionais básicas e de assistência à saúde 14,
Em 1991, profissionais de saúde, lideranças de movimentos sociais e pesquisadores envolvidos em diversas experiências que se baseavam nos princípios da educação popular se organizaram em torno da Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde, que foi constituída no I Encontro Nacional de Educação Popular em Saúde, ocorrido em São Paulo.
- Em 1998, a Articulação muda de nome para Rede de Educação Popular e Saúde, a qual passa a representar um espaço importante de articulação política, de troca de experiências e de formulação de teorias e de propostas alternativas para o funcionamento dos serviços de saúde.
- Segundo Stotz et al.18 (p.53): ” a unidade de propósitos dos participantes do movimento consiste em trazer, para o campo da saúde, a contribuição do pensamento freiriano, expressa numa pedagogia e concepção de mundo centrada no diálogo, na problematização e na ação comum entre profissionais e população.
É importante ressaltar, na identidade do pensamento de Paulo Freire e a dos participantes do movimento de educação popular e saúde, a convergência de ideologias aparentemente díspares, quais sejam, o cristianismo, o humanismo e socialismo “. No ano de 2003, com o auxílio do Ministério da Saúde no primeiro ano do governo Lula, realizou-se uma nova configuração entre os movimentos sociais que se articulavam em torno da luta pela saúde.
Em uma parceria com a Rede de Educação Popular e Saúde, realizaram-se encontros estaduais que culminaram em um encontro nacional no qual se constituiu a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, que ficou conhecida por ANEPS 19, A Rede de Educação Popular e Saúde continuou a existir de forma autônoma e, a partir de articulações provenientes de seus membros, também constitui-se a Rede de Estudos sobre Espiritualidade no Trabalho em Saúde e na Educação Popular.
Essa rede agrega sujeitos que, participando ou não das outras articulações, se interessam em aprofundar-se na temática da espiritualidade em saúde. Nos últimos anos, o Ministério da Saúde tem apresentado setores específicos para construção de políticas e incentivo a atividades no campo da educação popular em saúde, e também foi criado um grupo de trabalho específico junto à Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), órgão que congrega as entidades acadêmicas brasileiras que produzem no campo da saúde coletiva 20,21,
Esse sucinto resgate histórico se fez no intuito de demonstrar que, mais do que sujeitos que produzem uma reflexão acadêmica, no campo da educação popular em saúde, nos deparamos com coletivos que vêm desenvolvendo intensa militância política e social. Para muito além disso, são coletivos que apresentam grande dinamicidade e que têm a capacidade de constituir redes de articulação poderosas em suas capilaridades.
Nesses movimentos foram sendo formuladas novas maneiras de se compreender e de realizar processos educativos no setor saúde. A educação em saúde é, muitas vezes, entendida como um modo de fazer as pessoas do povo mudarem seus hábitos para assimilarem práticas higiênicas e recomendações médicas que evitariam o desenvolvimento de um conjunto de doenças.
Entretanto, para os autores que se baseiam na educação popular, educar para a saúde é justamente ajudar a população a compreender as causas dessas doenças e a se organizar para superá-las 11, A educação popular toma como ponto de partida os saberes prévios dos educandos. Esses saberes vão sendo construídos pelas pessoas à medida que elas vão seguindo seus caminhos de vida e são fundamentais para que consigam superar, em diversas ocasiões, situações de muita adversidade.
A educação popular faz uma aposta pedagógica na ampliação progressiva da análise crítica da realidade por parte dos coletivos à proporção que eles sejam, por meio do exercício da participação popular, produtores de sua própria história 21,22, A educação popular, além de permitir a inclusão de novos atores no campo da saúde, fortalecendo a organização popular, permite também que as equipes de saúde ampliem suas práticas, dialogando com o saber popular 20,
- A educação popular em saúde, assim, busca empreender uma relação de troca de saberes entre o saber popular e o científico, em que ambos têm a enriquecer reciprocamente 11,
- Segundo diversos autores, essa proposta torna-se cada vez mais necessária, à medida que foi sendo produzido um distanciamento cultural entre as instituições de saúde e a população, fazendo com que uns não compreendam o modo como os outros operam.
A educação popular em saúde tem como balizador ético-político os interesses das classes populares, cada vez mais heterogêneas, considerando os movimentos sociais locais como seus interlocutores preferenciais 23, A educação popular em saúde busca não apenas a construção de uma consciência sanitária capaz de reverter o quadro de saúde da população, mas a intensificação da participação popular radicalizando a perspectiva democratizante das políticas públicas.
- Para alguns autores, ela representa um modo brasileiro de se fazer promoção da saúde 21,
- Atualmente, a convivência nos serviços de saúde e os meios de comunicação de larga escala têm representado as grandes conexões que permitem o desenvolvimento de relações educativas entre os trabalhadores de saúde e a população 12,
Contribuições da educação popular para a educação em saúde As análises realizadas com base na educação popular apontam para a leitura de que a medicina não tem se dedicado a compreender os saberes, estratégias e significados que as classes populares desenvolvem diante dos processos de adoecimento para, a partir daí, estruturar modos de agir que integrem o saber popular e os conhecimentos técnico-científicos.
Via de regra, ou se confia no bom senso do profissional de saúde ou se produzem trabalhadores específicos para desenvolver medidas sanitárias desarticuladas dos atendimentos individuais, gerando pouco impacto na situação de saúde dos coletivos. Contrapondo-se a isso, a educação em saúde tem sido o setor que tem feito buscas no sentido de superar tais práticas, desenvolvendo diversas estratégias de diálogo entre os pensares e fazeres da população e dos profissionais de saúde 12,
Entretanto, hegemonicamente, as ações de educação em saúde têm se apresentado como importantes instrumentos de dominação e de responsabilização dos indivíduos pelas suas condições de vida 20, Para superar tal situação, propõe-se reorientar as práticas de saúde, de modo que a educação em saúde deixe de ser apenas mais uma oferta pontual dos serviços para ser algo inerente às suas práticas, construindo assim a participação popular no seu cotidiano 12,21,
Para Valla et al.24, a rede pública de serviços de saúde existente é muito importante para a manutenção da saúde das classes populares, e isto é reconhecido por elas; entretanto, segundo estes autores, há também a concepção de que muitas questões essenciais à sua saúde não podem ser solucionadas nestes serviços quando funcionam do modo como tradicionalmente eles têm se estruturado.
Nesse contexto, afirmam que a população vem apontando outras formas de se organizar para solucionar seus problemas de saúde, aliviar o sofrimento e construir formas terapêuticas de cuidado integrais. Os usuários têm, cada vez mais, buscado práticas tidas como “alternativas” que permitam compreendê-los e impactar em melhorias de saúde de forma integral.
E embora existam diversas práticas que se colocam com tal perspectiva, muitas delas não estão disponíveis nos serviços de saúde ou estão apenas à disposição de parcelas mais abastadas da população. Por isso, torna-se importante compreender e valorizar o modo como essas classes vêm construindo suas alternativas de enfrentamento dos problemas de saúde por meio de diversas estratégias 24,25,
Nessa perspectiva, a postura do profissional de saúde para com a medicina popular deveria ser de respeito e diálogo, identificando e apontando situações de que se tem conhecimento de malefícios causados à população por algumas técnicas e medicamentos populares, mas valorizando as práticas que representam uma sistematização de conhecimentos que vão se acumulando ao longo de várias gerações.
Seria relevante salientar o papel de diversos agentes informais de saúde, os quais apresentam grande respaldo popular e que portam saberes baseados em uma forte cultura, a qual se aprende na dinâmica social. Esses atores podem apresentar alto poder educativo, como os erveiros, as parteiras e as rezadeiras; entretanto, há pessoas que buscam ganhos financeiros, como renomados balconistas de farmácias e práticos odontológicos, que podem ser orientados para evitar danos à população corrigindo eventual má técnica 11,
Práticas como o uso de chás têm sido bastante comuns em áreas de serviços de atenção básica, sendo compreendidas como medidas de autocuidado, com grande autonomia da população para isto 26, Além de seu caráter terapêutico, segundo Celerino Carriconde 27, o uso de plantas medicinais apresenta relevância: (a) antropológica, por resgatar os saberes populares e, assim, elevar a auto-estima de populações, muitas vezes marginalizadas; (b) pedagógica, por permitir a instituição de uma relação dialógica entre trabalhadores de saúde e usuários que dominam os usos destas plantas medicinais; (c) econômica, permitindo o acesso ao medicamento fitoterápico; (d) ecológica, garantindo a manutenção de plantas que em muitas situações vêm sendo eliminadas pelas plantações com interesse meramente lucrativo.
A esse conjunto de valores, acrescentamos aqui a sua relevância social e política, pois, para conseguir as plantas, geralmente as pessoas as procuram junto aos seus vizinhos, fortalecendo a rede de apoio social e permitindo a discussão sobre o adoecimento e estratégias de sua superação na e pela comunidade.
A relação de diálogo diante de práticas como a fitoterapia é relevante, pois identificando os usos das plantas por parte da população, os profissionais podem enriquecer seus arsenais terapêuticos; ao mesmo tempo, podem orientar algumas incorreções no manejo de plantas medicinais que já foram cientificamente comprovadas, como efeitos adversos e contra-indicações de determinadas substâncias.
Essa relação permitiria o surgimento de um terceiro saber, fruto da interação entre os conhecimentos dos profissionais de saúde e da população 28, Outra ação educativa muito comum são as palestras, modo mais freqüente de realização de práticas coletivas em serviços de saúde. Elas precisariam ser reorientadas para que, ao invés do repasse de normas e orientações de higiene e boas condutas, tais iniciativas se apresentassem como oportunidades de diálogo entre trabalhadores e usuários, em que os aspectos coletivos da dinâmica comunitária pudessem ser enfatizados 11,
A formação de grupos de pessoas com determinadas características que as aproximam, seja uma condição de vida, como pertencer a certa faixa etária, ou ser portador de determinada doença, é estratégia também comumente utilizada para desenvolver processos de educação nas unidades de saúde.
- Um exemplo é a realização de cursos de gestantes que terão seus primeiros filhos, para trocar informações com mulheres experientes e, a partir daí, desenvolver um processo de discussão das condições comuns entre estas mulheres.
- Nem todos os grupos, entretanto, encerrariam a mesma capacidade educativa.
Seria preciso, para criar um grupo, primeiro identificar os interesses que mobilizam e os problemas mais relevantes de uma população. Em algumas situações, seria interessante, por exemplo, estruturar um curso sobre determinada temática como mote para se iniciar um grupo com as pessoas envolvidas nestas atividades 11,
- Nos grupos organizados a partir de patologias específicas, sua força estaria não no foco na doença, e sim na circulação de emoções, nas trocas que se efetuam no compartilhamento de medos, tristezas, dores e afetações de diferentes modos que se desenvolvem no processo de adoecimento e cura.
- A circulação desses afetos favoreceria o fortalecimento dos laços e vínculos sociais 25,
Uma estratégia muitas vezes vista como interessante é a exposição na unidade de saúde de fotos em que se identificam problemas ou onde se registram atuações coletivas da população para resolver determinadas questões, como um mutirão. Em outros casos, expor frases de pessoas da comunidade que tenham a ver com alguma característica da dinâmica social local.
Tais medidas visam a estimular as pessoas a pensarem e dialogarem quando vêm à unidade de saúde, quaisquer que tenham sido os motivos que as trouxeram 11, Estratégias de realização de diagnóstico e planejamento participativos das ações de saúde podem ser vistas como relevantes para mobilização e conscientização da população, mas também como necessários para que a perspectiva dos moradores possa corrigir distorções criadas pela perspectiva tecnicista, que muitas vezes leva a equívocos relevantes por parte dos profissionais de saúde.
Nesse sentido, o diagnóstico e planejamento participativos representariam uma possibilidade de ampliação do diálogo entre o saber popular e o saber técnico-científico 20, Em relação às ações coletivas realizadas fora do serviço de saúde, afirma-se que elas variam desde as mais “técnicas” até as mais “políticas”.
- Nelas, as equipes de saúde podem ter caráter mais diretivo ou serem praticamente convocadas pela população para participar.
- Quanto mais autônomas e mais voltadas para processos coletivos da dinâmica de vida, geralmente mais politizada estaria a população.
- Entretanto, como as ações coletivas, independentemente de quem as coordena ou do que as motiva, podem tanto promover desenvolvimento social como dificultá-lo, seria importante que fossem bem preparadas e que se tomassem os encaminhamentos adequados para que se desenvolva seu potencial educativo.
Geralmente, os grupos que são formados pela população se apresenta com características de prestadores de serviços, de ações reivindicatórias ou de realização de mutirões 11, Uma possibilidade desafiadora seria atuar na perspectiva do duplo caminho onde, ao mesmo tempo em que se reivindica e se responsabiliza os governantes, tenta-se solucionar os problemas com os recursos que consegue mobilizar autonomamente 29,
Progressivamente, entretanto, a criação de grupos e movimentos específicos de saúde foi deixando de ser a estratégia prioritária desenvolvida pelas classes populares, passando a ser mais comum a estruturação de grupos que discutem o tema da saúde diversificando a atuação dentro de organizações mais amplas das classes trabalhadoras 11,
Um desafio que se reconhece é que, além da atuação junto aos grupos da população, muitas vezes se faz necessário que as equipes de saúde desenvolvam ações políticas junto a instituições locais e lideranças políticas; sejam as que podem estar relacionadas com o desenvolvimento da comunidade, ou então as que têm o papel de manter o serviço para o seu adequado funcionamento.
A relação com essas lideranças deveria ser respeitosa, ao mesmo tempo em que se deveria ter clareza dos processos em negociação, a fim de evitar a manipulação das atividades dos serviços públicos de saúde por parte de grupos políticos com interesses privatistas 11, Um importante meio de comunicação que é proposto para ampliar a interlocução com a população é o rádio.
Além de apresentar elevado alcance, permitindo atingir um grande público de uma só vez, principalmente nas populações mais pobres, geralmente as emissoras de rádio estão acessíveis aos profissionais de saúde e permitem o diálogo com o ouvinte, dinamizando, articulando e aproximando o processo educativo da realidade das populações 11,
- Essa estratégia tende a se tornar mais potente em virtude da grande expansão das rádios comunitárias ocorrida nos últimos anos em todo o país.
- Uma das ações vistas como relevante para permitir o diálogo e troca de saberes é a realização ou participação em mobilizações que estão ligadas diretamente ao lazer e à interação social, como a organização de festas e eventos comemorativos, bingos etc.
Tais ações fortaleceriam a felicidade como projeto de vida para populações que, geralmente, têm muito pouca oferta deste tipo nas áreas onde moram, e demonstrariam uma abertura da equipe para ampliar a concepção de saúde com que atua 26, Brinquedotecas, clubes da terceira idade, rádios comunitárias, oficinas de arte, música e dança, exibição de vídeos, teatros de mamulengo e de rua são algumas das ações no setor da cultura popular vistas como iniciativas que poderiam potencializar atividades na perspectiva da educação popular em saúde, e que vão para muito além dos muros dos serviços de saúde 20,
A educação popular em saúde ajudando a compreender e lidar com as iniciativas autônomas da população: as redes de apoio social no território Para diversos autores, problemas como o desemprego, a precarização das relações de trabalho, a iniqüidade na distribuição de renda, a violência e a retração de redes sociais contribuem para a intensificação de um ciclo que gira em torno da pobreza, isolamento e adoecimento, e têm levado ao desenvolvimento de um certo sofrimento difuso na população.
Esse sofrimento difuso pode elevar a demanda de atenção à saúde e demonstrar os limites do atual modo de se estruturar a atenção à saúde no Brasil 24,30, A atuação dos profissionais de saúde que se baseia na realização de procedimentos vem produzindo uma limitada oferta de ações para lidar com os problemas complexos que se apresentam 25,
- O sofrimento difuso se caracterizaria por ” uma sensação de mal-estar generalizado com uma diversidade de sintomas, tais como irritabilidade, insônia, nervosismo, ansiedade, angústia, dores no corpo, acrescido da falta de perspectiva de vida ” 31 (p.250).
- Uma das condutas mais comumente utilizadas diante dessas situações é a medicalização, tratando com benzodiazepínicos, por exemplo, o que não resolve o problema; leva à cronificação do quadro clínico, apresenta uma série de efeitos adversos e não permite a explicitação dos problemas de base, dificultando ainda mais o desenvolvimento de estratégias coletivas de superação dos problemas.
De acordo com Victor Valla (1996, apud Lacerda & Valla 25 ), os profissionais de saúde precisam reconhecer que, diante da dificuldade de se lidar com situações de sofrimento difuso, ” a crise de interpretação é nossa “. Para esse autor, por partirmos de idéias preconcebidas que consideramos portadoras de verdade, não escutamos adequadamente as falas da população, não nos atemos aos seus discursos, e não nos abrimos a compreender o modo como operam seus saberes.
Colocando nossos conhecimentos científicos como centro do processo de trabalho, e não a vida dos sujeitos, estaríamos construindo modos de operar o trabalho em saúde que se desconectam da realidade vivida pelas classes populares 12,24,25, Torna-se essencial compreender a dinâmica que a própria população tem estruturado em suas estratégias autônomas de produção de vida, evitando julgamentos morais por parte dos profissionais de saúde.
Nos últimos anos, por exemplo, as igrejas evangélicas têm representado uma das buscas mais comuns realizadas pelas classes populares. Ao mesmo tempo em que as igrejas podem estar relacionadas a práticas indesejáveis de disciplinarização 32 e controle 33, em algumas situações, para alguns autores, elas também se apresentariam como lugares: onde as pessoas podem ser acolhidas e cuidadas; que trabalham com as emoções e afetos, gerando sensação de pertencimento a coletivos; em que se constroem redes de solidariedade capazes de resolver problemas de âmbito financeiro e afetivo; onde se afirmam relações que se baseiam em valores às vezes contrários aos interesses gerais da sociedade capitalista que os oprime e com os quais os sujeitos não querem se identificar; também, onde se consegue encontrar explicações para as coisas desordenadas e que passam a dar sentido às suas vidas 24,31,34,35,36,
- Lacerda et al.34 chegam a identificar várias semelhanças entre os trabalhos desenvolvidos nas classes populares pelos pastores evangélicos e os papéis que vêm desempenhando os agentes comunitários de saúde das equipes de saúde da família.
- Sendo assim, seria importante construir um diálogo com os agentes religiosos presentes nos grupos sociais, independentemente da opção religiosa do profissional de saúde.
É relevante identificar o modo como essas instituições religiosas podem ou não representar e fortalecer buscas de melhorias para a vida das pessoas, e produzir as parcerias necessárias para minimizar possíveis propostas que tendam a dificultar a construção de alternativas coletivas para os problemas de saúde da população 11,34,
- Lacerda & Valla 30 consideram o apoio social como um trabalho que busca o autocuidado ou o desenvolvimento de ambientes saudáveis como uma das dimensões de práticas ou de sistemas de saúde que se orientam por meio da perspectiva da promoção da saúde.
- No conceito de apoio social, agrega-se um conjunto de atividades que podem ter resultados favoráveis no enfrentamento dos problemas de saúde-doença, e que se estruturam mediante diversas relações solidárias que se estabelecem entre os sujeitos.
Essas relações podem se desenvolver ao se mobilizarem sistematicamente o conjunto de recursos emocionais, materiais e de informação a partir de relações íntimas e familiares ou até em grupos sociais maiores. As várias estratégias que desenvolvem o apoio social buscam ajudar na constituição de sujeitos que tenham capacidade de definir os rumos de suas próprias vidas, de ampliar sua autonomia.
Essa situação leva os sujeitos a terem maior possibilidade de responder aos fatores estressantes e passam a lidar melhor com as adversidades da vida, levando a melhorias na saúde física e mental 24,25, Ao trabalhar com a concepção de que a origem das doenças, bem como a sua superação, necessariamente está relacionada com as emoções que são mobilizadas pelos sujeitos, o apoio social se suporta em abordagens que privilegiam a totalidade corpo-mente, não considerando estas como dimensões distintas dos sujeitos.
O apoio social apresenta caráter de reciprocidade, trazendo efeitos favoráveis para todos os envolvidos, estejam aparentemente oferecendo ou recebendo o apoio, fortalecendo a compreensão de que as pessoas necessitam umas das outras para construírem relações de cuidado integrais 24,29,
Nessa perspectiva, o apoio social se desenvolveria e se potencializaria por meio da articulação em uma rede social, que se configura como uma teia que agrega e conecta os indivíduos; uma teia de vínculos sociais que permite uma circulação dos recursos tangíveis e intangíveis mobilizados pelo apoio social.
Esse apoio desenvolvido em redes de solidariedade possibilitaria o fortalecimento da singularidade dos sujeitos e os tensionaria a serem portadores de projetos para a própria vida, além de que reforçaria laços que criam uma sensação de pertencimento coletivo, melhorando sua saúde de modo integral em âmbito individual e coletivo 25,37,
Reconhece-se que as redes de apoio social geralmente se desenvolvem com base em articulações autônomas dos usuários; mesmo assim, os profissionais de saúde poderiam potencializar o apoio social: ajudando a desarticular redes sociais prejudiciais; identificando as redes sociais que circundam os usuários e estão envolvidas no seu adoecimento ou podem ser utilizadas para facilitar o enfretamento de seus problemas; fortalecendo redes sociais positivas existentes; estimulando a configuração de novos arranjos coletivos entre a população e os recursos disponíveis.
Tais atitudes ajudariam no processo terapêutico ao tornar conscientes, para os usuários, processos muitas vezes não identificados pelos mesmos, e permitir aos profissionais atuar em campos ainda não explorados em sua intervenção. Dependendo da complexidade do problema, os próprios profissionais de saúde também precisariam estar articulados em redes que ampliassem o cuidado aos usuários e seus familiares 24,25,29,
Sendo assim, a relação profissional de saúde/usuário poderia ser compreendida como produtora de apoio social, seja como apoio informativo ou emocional 25, O apoio informativo se estrutura na relação dialógica que se estabelece no trabalho em saúde, enquanto o apoio emocional se desenvolve a partir do modo como se configuram as relações baseando-se nas atitudes do profissional diante do usuário.
Na verdade, ambas as dimensões do apoio estão intrinsecamente articuladas, pertencendo a um mesmo processo, e elas poderiam ser potencializadas quando o profissional centra suas ações não nos conhecimentos que domina, e sim nas tecnologias leves do trabalho vivo operando em ato 38,
- Trataria-se de permitir que os afetos e afetações desencadeados na relação fizessem parte e orientassem as condutas do profissional de saúde 25,
- A Terapia Comunitária é uma técnica de trabalho com grupos que se baseia no relato da história de vida dos participantes e do modo como cada um lida com suas dificuldades do cotidiano.
Para alguns autores, o relato e a escuta atenta permitiria que as emoções circulassem e fossem ressignificadas pelos sujeitos, fortalecendo-os e aos processos coletivos em que se inserem. A Terapia Comunitária integraria, assim, as ações de prevenção e promoção à saúde que tomam como foco o sujeito e não as doenças 31,
Entretanto, é importante salientar que práticas de Terapia Comunitária não podem ser desenvolvidas de forma desarticulada de outros modos de luta social, para evitar que seu resultado seja mera resignação ou culpabilização dos sujeitos. Na análise de Lacerda & Valla 30, o apoio social se aproxima do paradigma ” sistema da dádiva “, que se estrutura na obrigatoriedade da tríade dar-receber-retribuir, fazendo com que os bens materiais e simbólicos possam fluir em trocas sistemáticas entre os diferentes laços e vínculos das redes sociais que se constituem.
Para fazer avançar a educação popular nos serviços de saúde Os próprios autores que produzem na perspectiva da educação popular em saúde reconhecem que há muitos avanços na expectativa dela se desenvolver junto aos serviços de saúde, entretanto, tais avanços não teriam ainda sido suficientes para mudar o modo como o modelo hegemônico vem sendo implantado, pois seria necessário que mais do que apenas alguns trabalhadores desempenhando este papel 21,
Haveria, entre os profissionais de saúde, a compreensão de que não é preciso aprender a fazer educação em saúde, bastando para tanto o seu conhecimento clínico; somaria-se a isto a pouca oferta de formação e de processos de educação permanente no conjunto dos municípios, fruto da inexistência de política com tal finalidade 20,
Tal situação estaria limitando o avanço das ações de educação popular em saúde. Seria necessário o desenvolvimento de políticas mais intensivas de formação de profissionais de saúde que considerassem a educação popular como método nas suas formações 21,
É feita a crítica de que, muitas vezes, as experiências de educação popular em saúde são desenvolvidas apenas por iniciativa dos profissionais, sem que houvesse uma política específica de indução por parte dos gestores municipais, chegando mesmo a ocorrer resistências por parte destes 20, Diante dessas situações, seria importante construir estratégias de disputa dos distintos projetos políticos junto à sociedade.
Tal caminho se tornaria mais difícil, entretanto, quando encontramos os trabalhadores com vínculos empregatícios precários, situação ainda extremamente comum em diversas localidades, por fragilizar estes atores diante dos que ocupam posição de governo.
A tentativa de incorporar a educação popular à atenção à saúde nos grandes centros urbanos tem enfrentado tanto o poder político como o econômico dominante, hegemônicos na lógica de funcionamento dos serviços de saúde, como a injusta distribuição de recursos por parte do Estado, que na maioria das vezes não privilegia os setores sociais 12,
A expansão da educação popular em saúde exigiria que, aos movimentos desencadeados pelos trabalhadores nos serviços de saúde, se somassem iniciativas de gestores nas três esferas de governo 21, Colaboradores L.B. Gomes participou da concepção do projeto, realizou a pesquisa em bases de dados e sua análise, e elaborou a redação final do artigo.E.E.
- Merhy participou da concepção do projeto, orientou a pesquisa em bases de dados e sua análise, revisou e orientou a redação final do artigo.
- Agradecimentos Os autores gostariam de agradecer a todos os integrantes da linha de pesquisa Micropolítica do Cuidado e o Trabalho em Saúde, da Pós-graduação em Clínica Médica, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelas contribuições inestimáveis nos debates realizados ao longo da elaboração desta pesquisa.
Correspondência: L.B. Gomes Departamento de Promoção da Saúde, Centro de Ciências Médicas Universidade Federal da Paraíba Cidade Universitária João Pessoa, PB 58051-900, Brasil Recebido em 24/Abr/2010 Versão final reapresentada em 04/Out/2010 Aprovado em 08/Out/2010 Correspondência: L.B.
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